quinta-feira, setembro 04, 2014

Capítulo 22 - O choro pode durar uma noite...

Débora Borges

Apesar de tudo o que aconteceu, eu estava com as esperanças renovadas. Depois de chorar bastante e pedir a Deus uma resposta, um versículo bíblico lido depois de uma oração acalmou meu coração: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmo 30:5). Eu sabia que Deus não iria nos desamparar e que aquela situação não ficaria assim. Estava contando para uma amiga que trabalhava comigo na creche que eu não sabia quando nem como o Michelson e eu iríamos ter nosso próprio lar, depois de termos perdido todas as economias naquele “golpe do apartamento”. Além disso, meu salário mal daria para pagar um aluguel, e o Michelson também ganhava tão pouco que não seria suficiente para cobrir nossas outras despesas. O jeito era continuar morando com minha família, até conseguir um emprego com salário mais alto e que nos permitisse continuar sendo fieis a Deus e aos Seus mandamentos.

Uma amiga que estudava a Bíblia conosco estava inconformada e perguntava por que Deus não nos ajudava. Então falei o que realmente estava sentindo naquele momento: “Servimos ao Deus da Bíblia. Ele é todo-poderoso e nos ama todo o tempo. Entregamos a vida a Ele e cremos que Ele está nos guiando pelo caminho certo. Nada nos acontecerá sem que Ele permita. Ele está vendo tudo, e sinto que Jesus tem planos diferentes daqueles que fizemos, mas que ainda são desconhecidos para nós. Se tudo o que planejamos desse certo, nossa vida teria outro rumo. Agora não estou vendo uma saída, mas confio em Deus. Tenho certeza de que Ele vai nos ajudar.”

Na verdade, o que mais nos incomodava era aquela sensação de falta de realização pessoal. Nosso trabalho era nobre e eu estava descobrindo a satisfação de educar crianças. Mas o Michelson tinha aspirações que não silenciavam dentro dele. Ele sonhava e buscava meios para utilizar na obra de Deus seus dons e conhecimentos jornalísticos. E, é claro, como marido provedor, nos dar condições financeiras para formar nossa família e ter independência. Era uma questão de dignidade.

Pouco tempo depois, fui chamada no meio da manhã para atender ao telefone na secretaria da creche. Era meu esposo e eu estranhei aquilo. Era a primeira vez que ele ligava para lá. Devia ser importante. Ele estava feliz e disse sem rodeios:

– O que você acha de morarmos em Tatuí?

– O quê?! – eu falei, rindo do entusiasmo dele.

– O pastor Rubens Lessa, da Casa Publicadora Brasileira, me convidou para fazer uma entrevista e um teste para uma vaga de editor.

Parecia um sonho. Eu não conseguia avaliar direito o que estava acontecendo nem imaginar como nossa vida iria mudar.

Quando ele estava em Tatuí, fazendo o teste, ficamos incomunicáveis, pois celulares não eram populares (e não podíamos ter um), não havia e-mails e eu não tinha telefone. Ah, como seria bom se já existisse Skype ou WhatsApp! Fiquei ansiosíssima esperando o retorno dele. Quando ele chegou, nos abraçamos demoradamente, sentindo a mão de Deus nos abençoando e conduzindo nossa vida de uma forma surpreendente. Em nosso olhar, era como se disséssemos um para o outro: “Eu sabia que Deus nos ajudaria.”

O Michelson estava eufórico como uma criança, enquanto contava cada detalhe de sua visita à CPB. Ele me disse que tudo era lindo lá: os jardins, os escritórios, o parque gráfico. E a cidade também.

Aquele mês transcorreu com a nossa rotina normal. A correria e o estresse do dia a dia me davam a impressão de que o dia da nossa mudança estava tão distante, ou que talvez nunca acontecesse. Mas tudo foi muito rápido. Quando chegou a notícia de que meu esposo havia sido aprovado no teste, tínhamos apenas uma semana para estar em Tatuí, pois o Michelson precisava começar a trabalhar em breve.

Um mundo novo me esperava e eu não estava pronta para ele. Emoções e sentimentos que eu nunca havia experimentado tomaram conta de mim. Eu me sentia como uma menininha de cinco anos de idade que iria ficar longe da mamãe. Estava totalmente insegura e parecia que eu não conseguiria fazer nada longe da minha mãe. Era uma dor muito forte ficar sem ver o rosto dela por tanto tempo. Sem poder receber seu carinho, seu abraço confortador nas horas difíceis.

Eu realmente não sabia o quanto havia sido mimada. Meus pais haviam me criado com o foco nos estudos, e eu achava que jamais seria dona de casa. Simplesmente não pensava nisso, antes de conhecer meu marido. Minha mãe não exigia que eu ajudasse nas tarefas domésticas, para que eu tivesse tempo de estudar e brincar; e mais tarde, na adolescência, comecei a trabalhar como bolsista da escola em que meu pai lecionava. Talvez ela quisesse me poupar do que sofreu e me dar uma vida totalmente diferente da dela. É claro que de vez em quando eu dava uma ajudazinha na limpeza, mas não o suficiente para estar preparada para cuidar de uma casa.

Ao chegar a Tatuí, meus olhos estavam ofuscados pela dor da perda. Eu queria estar feliz como o Michelson, mas não conseguia vencer a saudade, a insegurança e o medo do desconhecido. Olhei para a cidade do alto de sua entrada principal e ela me pareceu horrível. Era alaranjada, como se estivesse envolta em uma nuvem de poeira laranja. Eu contrastava aquela imagem com a minha última visão de Florianópolis, ao sair de ônibus da rodoviária. O céu azul, os raios do sol refletidos no mar como um espelho, gaivotas voando em frente a um barquinho de pesca igual ao do meu pai. Aquela cena era tão familiar que, para mim, passava despercebida. Mas agora eu achava que era a mais linda do mundo – e eu teria que viver sem ver o mar no horizonte. Isso me fazia sentir que estava muito longe de casa.

Hoje eu amo minha cidadezinha de Tatuí. É incrível, mas só penso em ir embora daqui se Jesus nos revelar que tem planos para nós em outro lugar. Caso contrário, quero morar aqui até que Ele volte e nos leve para o Céu.

Eu sabia que Deus queria que estivéssemos ali, mas esperava que Ele fizesse alguma coisa para aliviar minha dor. E Ele colocou pessoas amorosas em nosso caminho. Estávamos procurando urgentemente uma casa para alugar. Então, uma funcionária da redação da CPB prontamente se dispôs a ajudar. Mais do que fazer várias ligações, a irmã Ildete me transmitiu tanto carinho e acolhimento, que ela me deu forças para acreditar que eu ainda ficaria feliz.

Vimos várias casas, mas o que determinou nossa escolha foi conhecer a Charlotte. Em frente à casa dela havia uma casa pequena para alugar. Ela conhecia os donos daquela residência de meio lote e estava com as chaves dela. Batemos à porta da casa da Charlote e, quando ela se abriu, ouvimos um “olá” muito animado e vi o maior sorriso que já tinha visto, tudo acompanhado de um forte abraço. Ela nos tratou como se já nos conhecesse havia muito tempo e estivesse nos esperando. Ela era muito alegre e fez a maior propaganda do bairro. Era perto do centro da cidade e eu poderia ir a todos os lugares a pé, já que não tínhamos carro. Era bem arborizado, tranquilo, silencioso e com uma boa vizinhança. E o melhor de tudo: seríamos vizinhas, e ela se ofereceu para me apoiar no que eu precisasse. Se ela soubesse o quanto eu estava carente, talvez não tivesse dito aquilo, porque eu me apoiei mesmo!

O detalhe é que ela era esposa do chefe do Michelson, o pastor Lessa. Os dois foram mais do que amigos e ajudadores para nós; foram verdadeiros irmãos em Cristo. Não podia existir chefe melhor. Algumas vezes, ele até nos ofereceu seu carro para que pudéssemos sair, ir à igreja. E ela me deu dicas preciosas de culinária. Além de orar comigo constantemente e enxugar minhas lágrimas.

É maravilhoso esse amor fraternal da família de Cristo! Aonde quer que vamos, podemos contar com o apoio e o afeto dos irmãos que também amam Jesus e compartilham da mesma fé. Se não fosse isso, não sei se teria suportado o sofrimento.

*****

O dia em que chegamos a Tatuí com a nossa pequena mudança foi um dos mais frios daquele ano. Chegamos de ônibus antes do caminhão e entramos na casa ainda vazia. Era feriado de 1º de maio de 1998. O pastor Lessa e a Charlotte estavam viajando e passamos sozinhos nosso primeiro fim de semana na cidade.

A maioria dos nossos pertences – que eram presentes de casamento – permaneceu encaixotada, pois não tínhamos onde guardá-los. Possuíamos apenas uma cama e um fogão (presentes de casamento), uma TV velha que pertencia ao Michelson, uma escrivaninha e uma estante com livros. Felizmente, aquela casa tinha guarda-roupas planejados. Na segunda-feira, fomos procurar uma geladeira para pagar em parcelas.

Como também não tínhamos mesa nem cadeiras, fazíamos as refeições sobre uma caixa de papelão em cima da cama. E foi assim por alguns meses.

Nossa primeira "mesa"

Para mim, o aprendizado mais difícil foi enfrentar o tanque de roupas. Sem máquina de lavar, eu esfregava todas as roupas sujas. A pele fina das minhas mãos esfolava e chegava a sangrar. Por isso, eu só lavava roupas nas segundas-feiras, para dar tempo de cicatrizar as feridas e eu poder esfregar as roupas novamente. Até tentei usar luvas, mas não consegui me acostumar. Preferi calejar as mãos e ficar mais “forte”.

Eu gostava de olhar para as roupas lavadas e penduradas no varal, e me orgulhava de que eu mesma tinha lavado tudo aquilo.

Ao ver o quanto eu me sentia sozinha e triste, o Michelson sugeriu que eu fosse até uma loja agropecuária que havia perto de casa e verificasse se havia um filhote de cachorro para doação. Ele sabia que eu gostava muito de cachorros e que também estava sentindo falta dos três que tinha deixado na casa da minha mãe.

Naquele dia, não havia nenhum filhote, mas no dia seguinte o dono da agropecuária me ligou e passou o endereço de uma família que morava ali perto e que estava doando cachorrinhos com apenas 25 dias de vida. Eram oito filhotinhos para eu escolher. Estava indecisa, mas o senhor idoso pegou a menorzinha e disse que ela parecia um pinscher. Nem rabo ela tinha; era só um “toquinho”.

Então a aconcheguei em meus braços e a levei para casa. Ela não parava de tremer. Por isso, envolvi-a com vários panos de lã, pensando que ela estava sentindo frio. Depois descobri que ela tremia sempre que ficava nervosa. A Laila, como a chamamos, foi uma grande companheira e dona de uma “personalidade” forte. Agitada, bravinha, medrosa, carinhosa. Ela foi muito importante em minha vida e nunca vou esquecer nossos doces momentos e da ligação de amor que tínhamos. Ela ficou conosco por 14 anos e morreu em 2012, por causa de um tumor na boca. Aquele seria um dos dias mais tristes de nossa vida.


Nossa cachorrinha e grande companheira Laila
Aonde eu ia, a Laila me seguia. Nunca me deixava sozinha. Muitos dias eu só tinha ela com quem conversar face a face. Mas o Michelson me ligava várias vezes durante o dia, para saber como eu estava e falar que me amava. E esse hábito nós conservamos até hoje – todos os dias ele me liga só para dizer que me ama, e eu também retribuo as ligações.

Ele estava tão feliz e realizado que eu me recriminava por estar tão triste. Eu falava com Jesus o dia inteiro. Naquela época, aprendi a depender mais de Deus e nossa amizade se tornou muito mais sólida. Eu gostava de ouvir músicas que me faziam sentir a presença de Jesus, e sobre a cama eu contemplava o céu que aparecia através da porta do quarto. Ali eu imaginava Jesus olhando para mim.

Nesses momentos de oração e contemplação, pedi que Jesus fizesse algo para demonstrar que me ouvia e me amava. Que Ele me desse um “telefonema” no meio do dia, só para me lembrar: “Filha, Eu te amo. Você não está sozinha.” Eu sabia disso por meio da leitura da Bíblia, mas, mesmo sabendo, é gostoso ouvir “eu te amo”.

Então, certo dia, li uma história sobre como Jesus alegrou o coração de uma mulher acamada, fazendo algo simples, mas, ao mesmo tempo, improvável. Quando li aquilo, disse para Ele: “É isso mesmo! É isso que eu quero que o Senhor faça para mim também. Eu vou gostar.” Foi tão marcante! Desde então, Jesus me “liga” de vês em quando para dizer que me ama e que está me vendo. É como se tivéssemos um sinal secreto que só nós dois entendemos. Em momentos de angústia, provação e tentação, Ele me enviou esse sinal de maneira tão clara e evidente, que seria impossível eu não reconhecer Sua providência.

*****

Meus sentimentos de confiança e otimismo haviam mudando depois que deixei minha vida em Santa Catarina. E era isto mesmo o que eu sentia: que minha vida havia ficado lá, e em Tatuí estava só o meu corpo. Mas Deus é paciente e bondoso. Ele não muda e permanece fiel. Ele sabia que eu teria que passar por muitas coisas ainda, para aprender a confiar e ser feliz novamente. Enquanto eu sofria e vacilava, Ele esteve ao meu lado o tempo todo, aperfeiçoando meu caráter e moldando meu coração. Assim como minhas mãos tiveram que ser calejadas, eu também tive que sofrer para me tornar mais forte.

Mesmo tendo nos mudado para um lugar dentro do mesmo país, senti dificuldades para aprender a nova cultura local. Depois de cometer algumas gafes e ser alvo de olhares recriminatórios, acabei aprendendo lições importantes de convivência.

A primeira dificuldade veio quando fomos comprar pão na padaria. Meu sotaque era muito diferente da forma de falar do interior de São Paulo. Tinha que repetir umas cinco vezes o que eu queria, falando devagar e, às vezes, apontando o dedo. Além do problema do sotaque, havia também a questão do vocabulário. O pão, por exemplo, tinha nomes diferentes.

Aproximei-me do balcão e pedi:

– Quero cinco pães de trigo.

A balconista ficou me olhando sem entender nada. Então o Michelson riu de mim e disse, como bom criciumense:

– Cinco pães d’água, por favor.

A moça continuou sem entender nada. E foi a minha vez de rir. Então, corrigi:

– É pão francês.

Mas a moça continuava confusa. Então ela apontou o dedo para o pão e nos perguntou:

– É desse filãozinho que vocês querem?

– Isso! É o filãozinho! – falei, animada.

Ainda bem que logo aprendi a fazer em casa um pão integral que, modéstia à parte, é delicioso.

Mas o pior foi ter que me adaptar à crendice da “lombriga inteligente”. Eu conhecia muitas crendices da minha terra (região de pescadores, lembra?), mas nunca tinha ouvido falar nessa. Já, já explico.

Quando eu era criança, minha mãe me ensinou a nunca aceitar nada de estranhos: balas, doces ou qualquer alimento. Acho que por precaução e por higiene, para a nossa segurança (minha e de meu irmão). Além disso, mesmo quando visitávamos a casa de amigos e parentes, recebíamos muitas recomendações para não pedir comida, pois isso seria uma “falta de educação”.

Por isso, quando era criança, desde cedo aprendi a ter certo domínio sobre o apetite, e tínhamos que saber esperar para comer na hora certa. Além disso, tinha que ser a comida que fosse autorizada pelo “controle de qualidade” dos pais. E isso não era só na minha família. Era uma questão cultural mesmo. Sempre ouvia pessoas criticando crianças que viviam comendo na casa “dos outros”. Se eu fosse brincar na casa de uma amiga, no momento em que era anunciado o almoço, eu já sabia que era hora de correr para minha casa. É claro que às vezes comíamos na casa de amigos, mas sempre com a permissão dos pais e somente quando éramos convidados.

Então, ao chegar a Tatuí, fui surpreendida por um costume totalmente diferente. Há uma crença de que todas as crianças têm lombrigas e que elas, as crianças, são obrigadas a comer tudo o que têm vontade, senão as lombrigas “se revoltam” e podem até matar as crianças. Isso é tão sério que todos ficam preocupados. Se uma criança simplesmente olhar para alguém que esteja passando na rua comendo alguma coisa, essa pessoa nem pergunta se a criança pode comer aquele tipo de alimento e já lhe oferece um pouco.

Alguns chegam ao ponto de permitir que a criança experimente bebida alcoólica, para que ela sinta o gosto e não fique com vontade, caso contrário, ela pode adoecer! Fica “lombrigada”.

Não demorou muito para que eu tivesse meu choque cultural em relação a esse assunto em particular. Sofri muito para entender por que minhas atitudes em relação à alimentação e ao domínio próprio não eram bem aceitas – pior, eu parecia ser cruel e insensível para alguns tatuianos. Com o tempo, aprendi a respeitar as diferenças e passei a evitar atritos. Mas em nossa casa procuramos seguir as leis de saúde e ter domínio sobre as “vontades”, para não deixar que elas nos dominem. (Ah, e já fizemos exames e não temos lombrigas.)

*****

Eu me sentia diferente e desnorteada. Não sabia mais quais eram os meus objetivos e uma tristeza muito forte não me deixava fazer planos para o futuro. Passava a maior parte do tempo sozinha, pois havíamos decidido frequentar a igreja de uma cidade vizinha chamada Boituva, uns 30 km de Tatuí. Por isso mesmo, eu quase não conhecia irmãos que moravam em Tatuí, muito menos gente da minha idade e que tivesse as mesmas afinidades.

Acho que escolhemos aquela igreja porque ela tinha características semelhantes às daquela que frequentávamos em Santa Catarina: era pequena, simples, estava em construção e nos sentíamos úteis ali. Os irmãos eram acolhedores e estavam precisando de líderes, pois o primeiro-ancião deles havia falecido pouco tempo antes, em um acidente. O pastor Lessa e a Charlotte também frequentavam aquela igreja e prestavam auxílio lá. Eles nos davam carona, o que acabou estreitando nossa amizade.

O ano estava chegando ao fim e eu não queria passar o ano seguinte só chorando e cuidando da casa. O Michelson me incentivou a estudar para prestar o vestibular e entrar na faculdade. Eu queria cursar Psicologia, mas não havia esse curso em Tatuí. O mais viável seria cursar Pedagogia, o que também despertava meu interesse.

– Mas como vamos pagar a faculdade? – perguntei, meio incrédula. O que sobrava do salário do Michelson naquela época não daria para cobrir a metade do valor do curso.

– O Senhor proverá – foi a resposta confiante do meu marido. – Sempre que eu precisei, Deus enviou os recursos. Ele vai nos ajudar.

No primeiro mês, pagamos a matrícula e a mensalidade, e ficamos no vermelho. Tivemos que pedir dinheiro emprestado para comprar comida. Mas não poderíamos continuar assim nos meses seguintes, senão a “bola de neve” só iria crescer. Eu precisava trabalhar. Estava aflita e orava ao Senhor, quando o telefone tocou. Era a diretora da Escola Adventista me chamando para começar a dar aulas naquela tarde!

Terceiro ano do curso de Pedagogia
Era uma unidade de educação infantil, que funcionava em uma casa alugada no centro da cidade. Minha classe era bem pequena e os alunos tinham entre dois e quatro anos. Eles eram bem educados e obedientes e muito amorosos. Nos afeiçoamos rapidamente. Eu saía da escola correndo, passava em casa e corria novamente para a faculdade, onde ficava até às 23 horas.

Parecia que tudo estava dando certo. Eu me relacionava bem com os alunos e os pais deles, apesar de que ainda tinha muito para aprender sobre educação e pedagogia. Mas acho que não tinha tanta habilidade para me relacionar com as colegas de trabalho. Meu jeito e minha cultura não se enquadravam no que elas esperavam, e eu não tinha experiência para perceber no que precisava mudar.

No fim do semestre, a diretora me falou que era melhor eu fazer uma “retirada estratégica” e voltar quando estivesse mais preparada. Fiquei muito magoada na época, e minha autoestima foi lá embaixo. Estava com vergonha de chegar em casa e dar a notícia ao Michelson. É claro que chorei por muitos dias.

Para terminar de pagar a faculdade naquele ano, pedi que me dessem um desconto se eu pagasse tudo de uma vez. Para isso, utilizei o dinheiro da rescisão do contrato com a escola e o fundo de garantia. Assim, as mensalidades daquele ano estavam pagas; e o próximo ano estava nas mãos de Deus.

Algum tempo depois, a Charlotte me convidou para trabalhar na escola de educação especial que ela havia fundado e administrava, a Associação Cristã de Educação Especial (Acede). A filha caçula dela tem deficiência mental, e como não havia em Tatuí uma escola com princípios cristãos especializada em educação especial, a Charlotte decidiu criar esse ambiente para a filha e, ao mesmo tempo, ajudar outros pais.

Eu não me sentia preparada para ensinar àquelas crianças e resisti um pouco, mas acabei indo. Os recursos eram escassos, pois poucos pais de alunos podiam contribuir financeiramente, e a escola era mantida por meio de doações. Éramos quase voluntários, pois recebíamos uma pequena ajuda de custo. Todos faziam o melhor que podiam, e a Charlotte nos custeava alguns cursos de especialização em educação especial.

Foram anos de grande aprendizado, em todos os sentidos, principalmente no aspecto emocional. A alegria e as lutas daquelas crianças com tantas limitações mudaram minha maneira de encarar a vida. Comecei a ver como todos nós somos imperfeitos de maneiras diferentes, e precisamos uns dos outros. Somente quando Jesus voltar todas as marcas que o pecado deixou serão eliminadas.

Meus alunos e eu gostávamos de ficar planejando tudo o que faríamos ao chegar ao Céu, e orávamos todos os dias para que Jesus voltasse logo. Hoje, alguns deles já estão dormindo na sepultura, aguardando inconscientes o dia em que Jesus vai chamá-los pelo nome e levá-los para casa, com um corpo e uma mente perfeitos e capazes de fazer tudo o que sonharam, e muito mais. Eu quero vê-los correndo em direção a Jesus e pulando nos braços dEle. Depois, iremos brincar juntos com nosso querido Salvador.


Meus alunos na Acede

*****

Deus estava provendo a cada ano o que precisávamos. Providencialmente, consegui conversar com o dono da faculdade e ele me concedeu um bom desconto, deixando a mensalidade pelo mesmo valor que eu ganhava trabalhando na Acede. Assim, consegui chegar ao último ano sem dever nada.

Em junho daquele ano de 2001, cheguei em casa depois das aulas e não conseguia dormir. Estava passando mal e pensei que alguma coisa que eu havia comido no lanche da noite não tinha me caído bem. O dia seguinte era feriado e passei o tempo todo na cama. Achei que devia ser uma virose. Pedi ao Michelson que fosse à farmácia comprar algum remédio. Ele já estava saindo, quando senti Deus me falando ao coração:

– Que tal fazer um teste de gravidez?

– O quê?! Será possível? – estranhei.

Só então é que me dei conta de que fazia tempo que eu não menstruava. A correria era tanta que nem prestei atenção a esse “detalhe”.

O Michelson voltou rapidamente da farmácia, aplicamos o teste e logo surgiram os dois risquinhos na fita do teste de urina, indicando POSITIVO!

Foi a maior emoção da minha vida! Nós iríamos ter um bebê!

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Capítulo 21 - O chamado

Michelson Borges

A Débora e eu havíamos acabado de voltar de um fim de semana em Criciúma, no dia 14 de dezembro de 1997, quando recebemos a notícia: meu avô havia falecido. Coloquei a Bíblia numa pasta e fiz a seguinte oração: “Senhor, se Tu quiseres que eu fale algumas palavras no sepultamento do meu avô, faze com que alguém me peça isso.” Imediatamente fomos para Florianópolis e tomamos o primeiro ônibus para Criciúma. Eu sabia que a família (especialmente minha mãe) estava sofrendo muito e desejava poder falar-lhes da ressurreição dos mortos e das últimas conversas que havíamos tido com meu avô.

Uns quinze dias antes, quando ele ainda conseguia falar, a Débora e eu fomos visitá-lo no hospital. Pudemos dizer o quanto Deus o amava e queria vê-lo salvo. Minha mãe também teve oportunidades de falar do amor de Jesus enquanto cuidava do pai que tanto estimava. Procuramos lembrar-lhe dos assuntos que havíamos estudado na Bíblia alguns anos antes, especialmente sobre a promessa da volta de Jesus e a esperança da Nova Terra.

Quando chegamos ao Velório Municipal de Criciúma, encontramos quase uma centena de pessoas no local. Como meu avô havia sido vendedor de leite na juventude e treinador de times de futebol, era conhecido de muita gente. Todos estavam ali para dar o último adeus ao “Zé Tostão”.

A Débora e eu observamos brevemente o corpo inerte no caixão e nos sentamos ao lado de alguns parentes. Discretamente coloquei a pasta com a Bíblia embaixo da cadeira. Instantes depois, um pastor pentecostal começou a pregar o sermão fúnebre (ele havia sido convidado pela irmã do meu avô, que também é pentecostal). Notei a expressão de contrariedade de alguns enquanto o homem esbravejava e soltava ameaças sobre o “fogo eterno” para aqueles que vivem em pecado e não se preparam para o encontro com Deus. Quão inconveniente era aquela mensagem estridente para pessoas de precisavam de conforto e esperança.

Terminada sua fala (durante a qual algumas pessoas haviam se retirado do recinto), o pastor foi embora e deixou um líder da igreja dele responsável por dar andamento ao sepultamento. Naquele momento, uma tia (das que mais criticaram o fato de minha mãe, a Manu e eu termos nos tornado adventistas) tocou-me o braço e perguntou: “Você não vai falar nada?” Era o sinal que eu havia pedido a Deus!

Quando estávamos quase chegando ao local em que seria depositado o caixão, coloquei a mão no ombro do auxiliar do pastor e disse:

– Eu sou neto dele e quero falar algumas palavras.

O homem ficou surpreso com o meu pedido e deu um passo para trás. Abri minha Bíblia no capítulo 11 do Evangelho de João e falei a todos sobre a ressurreição de Lázaro. Depois, passeando pelas páginas sagradas, falei sobre o sono da morte, a volta de Jesus e a Nova Terra, onde não haverá mais choro, dor ou morte; onde Jesus enxugará nossas lágrimas e onde o mal não se levantará pela segunda vez.

Depois do sepultamento, alguns familiares vieram me agradecer por ter-lhes confortado com verdades bíblicas. Aquilo me deixou feliz, apesar da dor da perda. Senti-me usado por Deus para “abraçar” minha família por Ele. Na volta de Jesus, quero abraçar meu vovô também.

Anos depois, em 2006, minha avó Idalina, então com 82 anos, foi batizada na Igreja Adventista Central de Criciúma. Tive o prazer de entrar com ela no tanque. Curiosamente, nosso novo nascimento seguiu a ordem inversa das gerações: eu, minha mãe e minha avó. Em 2006, minha avó também faleceu, e a cerimônia fúnebre, desta vez, foi realizada pelo pastor adventista da Igreja Central de Criciúma.

*****

Em Florianópolis, a rotina prosseguia. Acordar às cinco da manhã, tomar o ônibus, viajar quase uma hora e encarar as crianças e adolescentes, alguns dos quais perguntavam: “Pra que estudar História? Tudo isso já passou mesmo.” Por mais que eu me esforçasse como professor, sempre me sentia aquém do ideal, o que me deixava num estado de frustração constante. Além disso, era difícil aceitar o fato de ter perdido as economias de todo um ano num apartamento que nunca seria construído. Eu já havia desistido de tentar entender por que Deus nos havia deixado passar por aquilo. Em lugar disso, entreguei tudo nas mãos dEle e resolvi esperar pela resposta. Afinal, como diz a Bíblia, “a minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto, esperarei nEle. Bom é o Senhor para os que esperam por Ele, para a alma que O busca” (Lamentações 3:24, 25).

Fazia um ano que a Débora e eu estávamos casados. Essa era a parte boa da história. Era maravilhoso poder contar com minha querida esposa em todos os momentos. Poder adormecer e acordar ao lado dela. Ela me dava força e motivação para continuar lutando em busca de nossos sonhos. Eu sabia que ela estava disposta a tudo, mesmo que tivesse que ir para o Chile comigo, caso o “plano B” tivesse dado certo. Como não havia um “plano C”, continuamos contando com a boa vontade dos pais dela e morávamos num dos quartos da casa deles.

Continuei servindo à Igreja Adventista da Barra como ancião e, juntamente com minha esposa, ministrávamos muitos estudos bíblicos nos fins de semana. Durante a semana, ambos trabalhávamos para tentar economizar algum dinheiro: ela numa creche no bairro Caminho Novo, e eu na escola adventista de Florianópolis. Mas ganhávamos pouco e não víamos muitas possibilidades de ter nosso próprio lar.

Não foi fácil decidir pelo casamento nessas circunstâncias, mas como já namorávamos havia quase três anos e não sabíamos quando os “bons ventos econômicos” iriam soprar a nosso favor, decidimos, com o apoio de nossos pais, ir avante com o matrimônio assim mesmo e batalhar unidos por um futuro melhor.

Quando acordava antes de o Sol raiar, para ir à escola, olhava para a Débora na cama, ainda dormindo, e frequentemente me lembrava de quão linda ela estava naquele dia em que a vi entrar de vestido branco pelo corredor do templo adventista de Campinas. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Pudemos receber a bênção de Deus por intermédio do pastor e amigo Ademar Paim. Ao tomar minha amada como esposa, prometi protegê-la e amá-la para sempre. A lembrança desse momento, toda vez que beijava o rosto macio da minha esposa antes de sair para o trabalho, de certa forma carregava minhas baterias.

Mas, um ano depois, mesmo que eu não quisesse demonstrar, era visível para a Débora (de quem eu não mantinha segredos) que o desânimo começava a me rondar. Quando estava no limite das minhas forças, Deus interveio e me deu um motivo para prosseguir com mais ânimo: fui chamado para apresentar, juntamente com o jornalista e amigo Felipe Lemos, um jornal diário na recém-inaugurada Rádio Novo Tempo de Florianópolis. A emissora pertence à Associação Catarinense (a mesma entidade mantenedora das escolas adventistas no Estado) e é ligada à Rede Novo Tempo de rádios do Brasil. Fiz grandes amigos lá, especialmente o Felipe e o meu chefe, o radialista Amilton Menezes, um verdadeiro cristão.

Antiga localização da rádio Novo Tempo de Florianópolis
O trabalho era difícil. Eu tinha que ir bem cedo para a escola, dar as primeiras aulas do dia, depois cruzar a ponte Colombo Sales, ir para a rádio (que ficava no continente) e preparar o jornal. Ao meio-dia, corríamos para o restaurante, almoçávamos depressa e regressávamos à rádio, pois à uma hora o jornal ia ao ar, ao vivo. Das catorze às quinze horas, eu gravava alguns programas e depois regressava à escola de ônibus para dar as últimas aulas do dia. Realmente era um ritmo intenso, mas a satisfação de poder atuar na área de comunicação me fez recobrar um pouco do ânimo quase perdido. Só que o salário ainda era baixo, e com a perda das economias feitas para comprar o “apartamento virtual” não tínhamos como sequer pensar em alugar uma casa.
Depois de alguns meses, com a ajuda do meu cunhado Dilamar, pude comprar um Fusca 1973, em Criciúma. Era azul, bem conservado e todo original: calotas e para-choques cromados, volante grande e estribos. Com ele, ir para o trabalho e cruzar a ponte de lá para cá e de cá para lá todos os dias acabou ficando mais fácil (curiosamente, o primeiro automóvel do meu pai também havia sido um Fusca). Fiquei seis meses nessa correria de dois empregos, até que numa manhã, enquanto preparava o jornal daquele dia, recebi uma ligação que mudaria minha vida de uma maneira que eu sequer poderia imaginar naquele momento.

– Michelson, é o pastor Rubens Lessa, da Casa Publicadora Brasileira. Ele quer falar com você.

O Felipe era muito brincalhão o que me fez pensar que se tratasse de algum tipo de “trote”. Rubens Lessa era o redator-chefe da editora adventista do Brasil. Por que ele telefonaria para mim?

– Deixa disso, Felipe! Estou muito ocupado para brincar.

– Tô passando a ligação.

– Alô?

Era uma voz diferente e percebi que não se tratava mesmo de trote.

– Aqui quem fala é Rubens Lessa, da Casa Publicadora. É o Michelson?

– Sim – respondi, quase gaguejando.

– Tenho recebido seus textos e os apreciado muito. Além disso, temos aqui o seu currículo e queremos fazer uma entrevista com você.

Eu havia perdido a conta de quantos artigos tinha enviado para a Revista Adventista. Um deles havia sido publicado em 1992, quando eu estava no primeiro ano da faculdade de Jornalismo. E do meu currículo, já tinha até esquecido.

– Você pode vir aqui para conversarmos? Cobriremos todas as suas despesas com a viagem.

O chão pareceu sumir debaixo dos meus pés ao ouvir aquele convite.

– Claro, pastor. Quando devo ir?

– Pode ser na semana que vem?

– Tudo bem. Vou conversar com a diretora da escola e com o meu chefe aqui na rádio. Creio que eles possam me liberar.

Desliguei o telefone ainda achando que fosse um sonho. Tinha que contar aquilo para a Débora, senão ia explodir. Liguei para a creche e ela atendeu.

– Oi. O que você acha de nos mudarmos para Tatuí? – disparei.

– Do que você está falando?

– Acabei de receber uma ligação do redator-chefe da Casa Publicadora Brasileira me convidando para fazer uma entrevista lá.

– É verdade?

– Claro que sim! Eu não ia tirar você da sala de aula para fazer piada, né?

– Isso é maravilhoso!

Eu também achava maravilhoso, mas me sentia um pouco inseguro, afinal, não tinha formação teológica, como a maioria dos editores da Casa, e era jovem e inexperiente demais para função tão importante.

Não conseguia deixar de alimentar esperanças. Seria essa, finalmente, a resposta para nossas orações? Mesmo assim, procurei deixar os pés bem firmes no chão da realidade. Estava “escaldado”.

*****

A semana demorou a passar. Numa segunda-feira de abril de 1998, tomei o ônibus para São Paulo. Assim que o veículo começou a se mover, lembrei-me da viagem que havia feito para o Instituto Adventista de Ensino quase dois anos antes. Será que dessa vez as coisas dariam certo? Ou teria que regressar novamente, com meus sonhos guardados na bolsa? Seria esse o plano de Deus para minha vida, afinal? Ou voltaria para casa com outra decepção e a cabeça cheia de por quês?

Na manhã do dia seguinte, desembarquei no Terminal Tietê (pelo menos esse eu já conhecia), peguei o metrô (pela primeira vez na vida) até o Terminal Barra Funda onde embarquei noutro ônibus que me levaria a Tatuí.

A viagem pela rodovia Castello Branco, na maior parte formada por longos trechos em linha reta, pareceu nunca acabar. Observava ansioso as placas no caminho querendo logo ler a palavra “Tatuí”. Menos de duas horas depois, de repente, o ônibus saiu da Castello e entrou na rodovia SP 127, que passa em frente à Casa Publicadora Brasileira. Levantei-me, peguei minha bolsa e pedi ao motorista para parar na editora, ao que ele respondeu: “Ali está ela.”

Mal pude acreditar no que vi. Do outro lado da rodovia estava uma das maiores editoras adventistas do mundo, que eu só conhecia por fotos. Dava para ver quase todo o pavilhão industrial e parte do prédio administrativo. Era tudo muito grande e bonito.


O ônibus parou e na minha frente desembarcou um senhor que eu identifiquei como um dos editores. Como eu admirava aqueles homens e mulheres que usavam o computador e a caneta como “púlpito” para alimentar milhares de leitores com palavras que salvam e edificam. Estremeci só de pensar que talvez pudesse vir a me tornar um deles.

Meu coração acelerou quando vi o logotipo da Casa em aço em frente à portaria da empresa. Os olhos ficaram úmidos de emoção. Identifiquei-me e entrei no complexo. Enquanto caminhava em direção à recepção interna, fiquei encantado com os belos jardins floridos e com as árvores majestosas que lembram pinturas da Nova Terra. Tudo era realmente muito belo, limpo e organizado. Na fachada principal, pude ler: “Casa Publicadora Brasileira, Editora dos Adventistas do Sétimo Dia.” E em letras azuis: “Jesus Cristo é a Resposta.”

Passei por dois tanques com carpas douradas, brancas e pretas, entrei pelas portas de vidro fumê e a recepcionista sorridente avisou à secretária do pastor Lessa de que eu havia chegado. Em instantes, o homem surgiu na minha frente. Ele era magro, caminhava com passo firme e tinha um olhar inteligente. Pelo porte não aparentava os sessenta e tantos anos que tinha. Apertou minha mão e sorriu.

– Como vai? Fez boa viagem?

Respondi que sim.

– Venha comigo. Minha sala é por aqui.

À medida que caminhávamos em direção à Redação, pude avistar vários corredores longos e pessoas indo e vindo com papéis e pastas na mão. Seria fácil me perder naquele labirinto...

– Andréa, este é o Michelson. O da foto, lembra?

– Ah, sim, lembro – ela não conseguiu esconder o sorrisinho maroto. – Como vai?

A secretária do pastor Lessa era bem simpática, gentil e prestativa. Tempos depois, ela acabaria me revelando o “mistério” da tal foto. Meses antes da entrevista eu havia enviado um artigo acompanhado de uma foto. A única foto boa que eu tinha de terno e gravata havia sido tirada no intervalo de um curso para jovens realizado no antigo Centro Adventista de Treinamento (Catre), em Itapema, SC. Era Inverno e a Débora eu caminhávamos pela praia. Subi num brinquedo que tinha uma tela e nela havia um buraco. Coloquei o rosto ali e a Débora me fotografou. Gostei da foto. Pensando que na editora poderiam “recortar” meu rosto, enviei a foto junto com o artigo.

Algum tempo depois, vasculhando os arquivos, a Andréa localizou minha foto e mostrou ao pastor Lessa.

– Esse é o Michelson? – ele perguntou.

– Sim – ela respondeu, e completou: – Não parece que ele está num galinheiro?

Os dois caíram na risada. E por isso tiveram que conter o riso quando o “moço do galinheiro” apareceu na Redação.

O “moço do galinheiro”
Quando entrei na sala do redator-chefe, fiquei maravilhado. Atrás da cadeira dele havia uma estante de madeira cheia de livros. Na parede à direita, dois quadros com pinturas de cenas bíblicas ornamentavam o ambiente. Sentei-me em frente à mesa de madeira escura e, enquanto o pastor Lessa me fazia várias perguntas – relacionadas à minha conversão, passando por meu casamento e atuação na igreja, até o meu trabalho na escola adventista de Florianópolis e na Rádio Novo Tempo –, estremeci só de pensar que daquela conversa dependia todo o meu futuro. Elevei a Deus uma prece silenciosa.

O sinal do meio-dia soou, interrompemos a conversa e fomos almoçar no refeitório da empresa. A comida era vegetariana e centenas de funcionários faziam suas refeições ali todos os dias. Depois do almoço, sempre dava fazer uma caminhada em meio aos jardins. Que contraste entre aquele ambiente tranquilo e o corre-corre dos meus dias em Florianópolis, quando mal dava para engolir o almoço antes de entrar no ar.

À uma hora, o pastor Lessa e eu estávamos de volta à sala dele. Depois de mais alguns minutos de conversa e uma prova oral de conhecimentos gerais, fui submetido a um exame escrito de gramática, na sala de reuniões da Redação – apropriadamente batizada de Sala de Reuniões Guilherme Stein Jr., já que esse pioneiro havia sido o primeiro editor a produzir literatura adventista em língua portuguesa, além de ter sido o primeiro converso da Igreja Adventista batizado no Brasil.

Às quinze horas, o sinal soou novamente, deixando-me confuso. Seria o fim do expediente, tão cedo? Depois fui informado de que além dos costumeiros sinais de início e fim da jornada de trabalho e do intervalo para almoço, o sinal soa às nove e às quinze horas, avisando os funcionários de que é o momento da pausa para oração. Onde quer que esteja, a pessoa – funcionário ou visitante – é convidada a participar de uma prece pelo trabalho desempenhado na editora e pela pregação do evangelho. Aquilo me deixou impressionado.

Terminado o exame, fui levado para um tour pela editora. Pude ver as enormes impressoras planas e a rotativa de vários metros de comprimento, capazes de imprimir milhares de páginas por hora com textos que salvam e instruem. Pude ouvir algumas histórias relacionadas com a editora, como a do ex-presidiário transformado por um folheto. Quando foi libertado, ele não sabia que rumo dar a sua vida. Sentado numa sarjeta após a chuva, ele pôde ver um pedaço de papel amassado vindo em sua direção, boiando no fio de água que corria embaixo de suas pernas. Ele pegou o folheto impresso pela Casa Publicadora Brasileira, leu a mensagem, procurou uma igreja adventista, recebeu estudos bíblicos, foi batizado e começou nova vida.

Essa era apenas uma entre muitas histórias que mostram que a CPB é mais do que apenas uma editora de livros e revistas. Seria bom demais fazer parte dessa história, dessa missão...

À noite, depois de me levar para jantar, o pastor Lessa gentilmente me mostrou a cidade de Tatuí, também conhecida como “cidade da música”, devido ao fato de abrigar um famoso conservatório musical mundialmente conhecido. O centro da cidade fica a uns dez quilômetros da CPB. O município tem quase duzentos anos, mas a população não passa muito de cem mil habitantes e dá para contar nos dedos o número de edifícios. No entanto, o que me chamou a atenção mesmo foi a quantidade de praças na cidade. Pareceu-me haver uma por quarteirão.

Às 23h30 embarquei no ônibus que me levaria a Curitiba, onde tomaria outro para Florianópolis. Dormi pouco na viagem que durou toda a madrugada, pois o veículo parava muito e minha mente estava fervilhando de pensamentos e sonhos. Mal via a hora de poder contar para a Débora tudo o que eu havia visto.

*****

Trinta longos dias se passaram sem que eu recebesse qualquer notícia da Casa Publicadora Brasileira. Já estava me consolando com o pensamento de que havia sonhado alto demais, afinal, eu era apenas um jovem recém-formado, sem muita experiência em jornalismo e menos ainda do ramo editorial. Devia haver muita gente interessada no cargo que eu poderia ocupar na editora. Então por que eu?

Enquanto aguardava a quebra do silêncio angustiante, lembrei-me de algumas cartas que havia trocado com um jornalista adventista que, como eu, dava aulas de História em Curitiba. Ruben Dargã Holdorf era também repórter do jornal O Estado do Paraná (hoje ele é professor no curso de Jornalismo do Unasp). Não sei bem como iniciamos a correspondência (na época ainda não usávamos e-mail), só sei que procurávamos animar um ao outro, pois nosso desejo era de contribuir na obra de Deus por meio de nossos talentos e formação.

Numa dessas cartas, datada de 14 de julho de 1997, Dargã escreveu: “Graças ao poder divino, temos suportado todas as provas, galgando sempre novos degraus e, assim, aperfeiçoado nosso caráter. Fique certo de que estaremos orando para o Senhor apresentar a você e sua família Seus planos. Confie nEle e aceite o que vier. Viva o presente, confiando que o futuro pertence a Ele somente. Mais para frente Deus repartirá com você Seus anseios e desejos. Nós também vivemos uma tremenda expectativa, mas aprendemos, após muito apanhar, que, às vezes, precisamos nos aperfeiçoar mais na escola da vida, do dia a dia. Assim, nossa esperança cresce.”

De fato, o sofrimento e as lutas nos preparam para enfrentar a vida. Moisés teve que passar quarenta anos no deserto pastoreando as ovelhas do sogro, até que Deus o considerou apto para a tarefa gigantesca de guiar milhões de pessoas à terra prometida. Paulo também teve sua escola no deserto antes de poder falar às multidões. Longe de querer me comparar a esses gigantes da fé, o que quero destacar é que o meu “deserto” durou pouco: apenas dois anos e meio.

Numa manhã de abril, o telefone tocou na redação da rádio. Era o presidente da Associação Catarinense.

– Olá, pastor. O senhor tem alguma notícia para mim?

– Tenho sim. Mas não sei se é o que você gostaria de ouvir...

Não sei por que, tive a impressão de que ele estava brincando comigo e tentei averiguar.

– O senhor está brincando...

– Estou, sim, filho. Pode arrumar as malas. A CPB te chama. Eles precisam de um editor associado para livros didáticos. Alguém que escreva bem e que tenha experiência em sala de aula. Parece que acharam a pessoa certa.

Livros didáticos! O pastor Lessa tinha comentado isso comigo durante a entrevista, mas na ocasião eu não me havia dado conta de como as coisas se encaixavam perfeitamente e de como o meu “deserto” realmente não fora tão prolongado. Meus dois anos e meio de experiência em sala de aula haviam sido o verdadeiro teste; a preparação adequada. E pude constatar mais uma vez que o trabalho bem feito, não importa qual seja – se numa metalúrgica ou numa escola –, é um verdadeiro cartão de visitas que depõe contra ou a favor de nós. Conforme escreveu Ellen White, “aquilo que merece ser feito, merece ser bem feito” (Mensagens aos Jovens, p. 145).

*****

No dia 1º de maio de 1998, um dia frio de feriado, entramos na casa alugada em que moraríamos a partir dali. Uma casa de meio lote no bairro Junqueira, em Tatuí. A casa estava praticamente vazia, pois não tínhamos mobília. Mas era a nossa casa. A partir dali iríamos ter nossa vida. Era como se estivéssemos começando a vida de casados. Uma nova vida em todos os sentidos.

O escritório na Redação da Casa Publicadora Brasileira (2005)
No dia seguinte, abri a porta da minha sala na redação da Casa Publicadora Brasileira. Sentei-me na cadeira giratória em frente ao computador. Contemplei o jardim que podia ser visto através da janela do escritório. O céu estava azul, sem nuvens. Com um sorriso nos lábios, repeti em pensamento: “Bom é o Senhor para os que esperam por Ele, para a alma que O busca.”

terça-feira, fevereiro 08, 2011

Capítulo 20 - Um só coração

Débora Borges

“Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho, para que Me temam todos os dias, para o seu bem e bem de seus filhos” (Jeremias 32:39).

Era o nosso terceiro ano de namoro e eu não conseguia mais imaginar a vida sem meu amado. Mas as circunstâncias não eram favoráveis para pensar em casamento, pelo menos não naquele momento. Não tínhamos condições financeiras de ter nossa casa própria e de manter um lar. O Michelson não conseguia trabalho em sua área de formação (comunicação), pelo fato de ser fiel aos mandamentos de Deus e guardar o sábado bíblico. Além disso, ele dava poucas aulas na escola adventista. Eu era recém-formada no ensino médio e ainda estava pensando em me preparar para cursar uma faculdade no ano seguinte. Mesmo assim, sentia que Deus nos ajudaria de alguma forma, e ao pensar no futuro, meu coração se enchia de esperança de que nossa situação iria melhorar. Então, apesar de não termos dinheiro suficiente, marcamos a data do casamento para o fim daquele ano de 1996, e eu comecei a sonhar com o grande dia.

No segundo semestre, surgiu a oportunidade de eu substituir uma auxiliar de professora numa creche da rede estadual. Era uma experiência nova que me marcaria a vida. Aprendi muitas coisas, principalmente o que fazer e o que não fazer no relacionamento com crianças e com as famílias delas. Na verdade, aquele emprego acabou me influenciando para cursar Pedagogia anos depois.

O salário na creche era baixo, mesmo assim, foi possível guardar um pouco de dinheiro para ajudar nas despesas do casamento. Além do mais, eu gostava de trabalhar lá e apreciei as amizades que fiz.

No primeiro dia de trabalho, a professora que eu iria auxiliar, a Stela, percebeu que eu era religiosa e me abordou com a pergunta: “Você acha que Deus pode perdoar qualquer pecado? Qualquer um?” Ela revelou angústia e inquietação no olhar. Procurei assegurar-lhe de que o amor de Deus é incondicional – eu sabia disso por experiência. Ele nunca deixa de nos amar e está sempre disposto a nos perdoar e nos dar uma chance de mudar. Ela me pediu para confirmar isso várias vezes e me fez muitas perguntas sobre a Bíblia. Ofereci-me para estudar a Palavra de Deus na casa dela, nos sábados à tarde, e ela aceitou com alegria.

Uma professora de outra classe sempre ficava me observando quando nos encontrávamos. Eu achava que ela não gostava de mim porque minha tia havia sido noiva do esposo dela e aquela reação à minha presença poderia sem algum tipo de implicância. Um dia, no horário do lanche das professoras, ela sentou ao meu lado e me perguntou em alto e bom som, para que todas pudessem ouvir:

– E aí, Débora, você que conhece bem a Bíblia, diga para nós quando é que Jesus vai voltar.

Olhei para ela e vi que estava sorrindo. Interpretei aquilo como deboche e senti o rosto ficar quente. Devo ter corado, mas procurei responder com calma, porém, num tom de seriedade:

– A Bíblia diz que o dia e a hora ninguém sabe, mas Jesus nos deixou alguns sinais que mostram a proximidade desse dia.

– É mesmo? Eu gostaria de saber mais sobre isso – ela disse com sinceridade na voz. – Posso estudar a Bíblia com vocês, na casa da Stela?

Fiquei tão surpresa que não soube o que dizer naquele momento. Estava esperando provocação, mas, na verdade, ela queria mesmo conhecer as Escrituras Sagradas. A partir daquele dia, nos tornamos grandes amigas e ela passou a estudar a Bíblia conosco.

Nosso grupo de estudos foi crescendo. A coordenadora da creche estava de licença por causa de depressão e ficou sabendo dos estudos bíblicos. Ela e o esposo pediram para se unir a nós. Depois de mais algum tempo, outra auxiliar nos contou que o marido havia estudado a Bíblia com um adventista. Na época, ela foi contra porque tinha muito preconceito. E de tanto brigar com ele por causa dos estudos, ele acabou desistindo. Mas ela começou a ler a lições dele e a compará-las com a Bíblia. Viu que o que ele havia estado estudando era correto e descobriu muitas coisas que não conhecia sobre Deus e sobre a vontade dEle. Agora ela estava arrependida de tê-lo feito desistir dos estudos, mas ele realmente havia perdido o interesse e não quis voltar atrás. Sabendo disso, a convidamos para se unir a nós nos estudos e ela concordou.

Infelizmente, a Stela, que motivou o início dos estudos na casa dela, não foi perseverante. Na verdade, ela nunca abriu de verdade o coração. Estava sempre agitada e não se concentrava no que estávamos estudando. A exemplo de Marta, irmã de Lázaro e Maria, ela ficava preocupada com outras coisas e mal conseguia se sentar para ouvir. Deixava que tudo ao redor interrompesse sua atenção e aos poucos foi colocando empecilhos para não continuar o estudo. Fiquei triste por ela. Era uma pessoa boa, mas nunca conseguia estar em paz – e eu sabia que Jesus podia dar-lhe a paz que ela desejava. Continuei orando por ela, mas tivemos que mudar o local da classe bíblica e prosseguir sem ela.

*****

Minha vida e do Michelson antes do casamento virou uma correria só e mal tínhamos tempo para namorar. Apesar de sentir muita satisfação por tudo o que fazíamos, minha esperança era de que depois de casados pudéssemos ter mais tempo para nós.

Como não tínhamos automóvel, perdíamos muito tempo no percurso entre um lugar e outro. Um dia calculei quanto tempo havia desperdiçado dentro dos ônibus e achei absurdo. O Michelson conseguia ler até em pé, nas viagens, mas eu ficava enjoada.

Desde a segunda série eu pegava ônibus para ir à escola. Na sexta-série, fui estudar em Florianópolis e aí a viagem demorava ainda mais. Se tudo corresse bem e o trânsito fluísse normalmente, levava uma hora para ir e uma hora para voltar. Mas, na volta para casa, o congestionamento era terrível e a viagem frequentemente levava até duas horas. Isso em um ônibus velho, com bancos desconfortáveis e cheirando a óleo queimado que eles passavam no assoalho do veículo. De vez em quando, via pessoas escorregando por causa daquele óleo. Não sei por que passavam aquilo no ônibus.

A pior parte da viagem era quando saíamos da BR 101 e entrávamos num bairro anterior àquele em que eu morava. Ali não havia calçamento. A estrada era de terra e cheia de buracos e curvas. Mesmo assim, os motoristas não diminuíam a velocidade e íamos literalmente sacolejando até chegar à Barra do Aririú. Quando a porta do ônibus se abria para sair ou entrar passageiros, junto entravam nuvens de pó. Se lambêssemos os lábios, dava para sentir o gosto do barro. Então, eu chegava em casa com odor de óleo misturado com poeira, e os cabelos quase nem mais balançavam.

A creche em que eu trabalhava não ficava tão longe de casa, mas era preciso tomar dois ônibus, ou apenas um e caminhar mais uns dois quilômetros. Eu preferia caminhar, quando não estava chovendo.

*****

O tempo ia passando e a data marcada para o casamento se aproximava. Eu ainda esperava por um milagre. Sonhava em pelo menos ter nosso cantinho para morar. Nem que fosse um cômodo e um banheiro, mas que pudéssemos ter nossa privacidade e começar a construir a vida juntos. Fomos até ver uma quitinete para alugar, mas qualquer aluguel consumiria a maior parte do nosso salário, e todos diziam que era jogar dinheiro fora. Não sabíamos o que fazer. E o Michelson ainda sonhava e fazia planos para cursar teologia. O futuro era bem incerto, mas orávamos e eu sentia que Deus estava cuidando de tudo. Eu me sentia mesmo como uma filhinha querida e confiava que meu Pai celestial cuidaria de nós, de um jeito que eu ainda não conhecia.

É claro que às vezes eu ficava ansiosa e surgiam sentimentos de angústia e vontade de ver tudo resolvido mais rápido e da maneira que eu queria, sem esperar que Deus fizesse do modo dEle. Mas ainda bem que Ele é soberano e dirige tudo, porque se Ele atendesse todos os meus pedidos, não sei onde estaríamos sofrendo hoje. É como escreveu C. S. Lewis, em seu livro O Problema da Dor:

“Quando queremos ser algo além do que Deus quer que sejamos, estamos desejando na verdade aquilo que não nos fará felizes. As exigências divinas que soam aos nossos ouvidos naturais mais como as de um déspota e menos como as de alguém que ama nos conduzem aonde deveríamos querer ir, caso soubéssemos o que desejamos” (p. 63).

Certo dia, o Michelson e eu fomos visitar a amiga Rafaela. Ela havia conhecido um jovem, filho de líderes da Igreja Adventista Central de Palhoça. Namoraram pouco mais de um ano e se casaram três meses antes de nós. A casa deles era pequena, mas bem bonitinha. Tudo era novo, ficava em um bairro razoavelmente bom, e o melhor: era deles. O Michelson pregou na igreja que ficava ali perto e passamos o dia lá. Foi muito agradável. A Rafaela amava muito o esposo e não mais parecia guardar qualquer ressentimento por mim. Conversamos muito sobre a Bíblia e também sobre os planos que tínhamos para o futuro. Mas, embora nosso casamento estivesse marcado, não sabíamos dizer onde iríamos morar ou quando poderíamos ter uma casa, como nossos amigos tinham.

Na volta para a casa dos meus pais, no ponto de ônibus, o Michelson notou que meu olhar estava um pouco triste e talvez ele tenha ficado meio chateado comigo. Como se pudesse ler meus pensamentos, ele disse:

– Eu sei que você gostaria de estar numa situação parecida com a deles. Só que enquanto ele trabalhava e guardava dinheiro para comprar casa e carro eu estava estudando e gastando dinheiro. Mas saiba que não me arrependo nem um pouco. O que ele tem pode acabar, mas o conhecimento que adquiri ninguém pode me tirar, e para mim vale muito mais.

Eu não queria que o Michelson sentisse aquele peso e nem desejava dar a impressão de estar fazendo qualquer tipo de comparação entre a vida deles e a nossa. Na verdade, eu também pensava como meu noivo, mas sonhava ter nossa casinha e não precisar mais perder tanto tempo andando de ônibus. Mas, definitivamente, bens materiais nunca foram a prioridade do Michelson. Ele só tinha interesse em continuar estudando e pregando o evangelho. Se Deus nos acrescentasse algo, seria muito bom, mas meu futuro marido não buscava lucro. Até hoje, quem se preocupa mais com a parte financeira de casa sou eu. E não reclamo disso.

Eu sabia que ele era uma pessoa muito especial, diferente daqueles que só pensam em acumular tesouros neste mundo. Ele me ensinou que nossa segurança, até mesmo financeira, reside em nossa dependência de Deus. Por isso, ao lado dele, eu me sentia tranquila, embora não tivesse quase nada concreto em que me apoiar. Mas, dentro de pouco tempo, nossa fé seria ainda mais severamente provada.

Numa noite de sexta-feira, uma prima que morava num bairro distante aguardava no carro com meus tios em frente à igreja. Fiquei muito surpresa ao vê-los ali nos esperando e mais ainda quando nos contaram o motivo da visita. Ela soube que eu iria me casar e veio nos oferecer um apartamento financiado que ela queria vender. Ficamos interessados, mas pedimos desculpas e explicamos que não iríamos conversar sobre negócios nas horas do sábado. Expliquei-lhes que era o dia do Senhor e que nós respeitávamos a Lei de Deus. Eles ficaram um pouco desconsertados, mas não insistiram e prometeram voltar no domingo pela manhã.

Fiquei completamente entusiasmada e queria crer que aquilo era uma resposta às minhas orações. Saí falando para todo mundo, sem nem saber se o negócio daria certo, porque eu queria muito que Deus nos desse um lugar para morar.

No domingo, eles levaram todos os papeis para nos mostrar: planta, contrato, fotos. Acreditamos cegamente que aquele plano havia “caído do Céu” e fechamos negócio sem ao menos ter ido ao local. Para o Michelson isso não importava muito, pois nos planos dele moraríamos lá por pouco tempo. A promessa era de que o apartamento ficaria pronto em fevereiro daquele ano, três meses depois do nosso casamento. Então, ele achava que ficaríamos lá apenas até o fim do ano, quando poderíamos vender o imóvel para ir para o Chile, onde o Michelson pretendia cursar Teologia. Ele se referia a essa ideia como “plano B”, já que o “plano A” (de estudar no Unasp) havia falhado.

Não seria fácil pagar as parcelas do apartamento e ainda manter as despesas normais de um lar. Não teríamos dinheiro para comprar mais nada. Ainda assim, contaríamos com a ajuda do meu pai para a alimentação ou qualquer necessidade extra que surgisse.

Eu estava feliz e preocupada. Muitas pessoas nos aconselharam a pensar melhor no negócio, mas eu nem me dei tempo para duvidar de nada. Queria que desse tudo certo, e pronto. Quais eram as nossas opções? Morar no “meu” quarto, na casa dos meus pais, ou pagar aluguel. E, se realmente fôssemos para o Chile no ano seguinte, teríamos feito um ótimo investimento, pois os imóveis costumam valorizar.

Na segunda-feira, providenciamos os documentos necessários e saquei o valor que minha prima pediu para cobrir o que ela já havia pago. Era exatamente o que eu tinha conseguido economizar. Lá no escritório da construtora, chamou-me a atenção uma jovem que estava muito impaciente. Ela falava nervosamente que não aguentava mais esperar e por fim saiu dizendo: “Eu desisto!” Perguntei para outra moça que estava ali o que havia acontecido para aquela mulher ficar assim tão nervosa, e a moça explicou que era pela demora na entrega do apartamento. Então fiquei sabendo que aquela já havia sido a terceira remarcação de data, e que provavelmente, pelo andamento das obras, dali a cinco meses o nosso apartamento ainda não estaria pronto. Mas a moça parecia bem mais otimista do que aquela que tinha saído aos gritos, e acreditava que no máximo até o meio do ano eles entregariam as chaves.

Fiquei um pouco desanimada ao pensar que teria que esperar tanto tempo, mas já que estávamos ali no escritório prestes a assinar o contrato, fomos adiante. Quem sabe eles conseguissem entregar o nosso apartamento antes do prazo...

Minha prima não havia mencionado absolutamente nada sobre essa demora e ficou um pouco envergonhada ao me ver descobrir tudo minutos antes de assinar os documentos. Eu simplesmente ignorei as evidências e a insegurança que estava sentindo. Ingenuamente e também constrangida de voltar atrás, quis manter o negócio e ainda acreditar que logo teríamos nosso lar.

Depois daquilo, os preparativos para a cerimônia e a festa de casamento absorveram toda a minha mente, meu coração e meu tempo. Nossos pais iriam dividir os gastos e dentro do orçamento me deram carta branca para escolher o que eu quisesse. Minhas ideias começaram a fervilhar. Passei a prestar atenção como nunca em vestidos de noiva, decorações... e reunia aquilo que eu achava mais bonito de cada casamento.

Vi um casamento em que os noivos paravam embaixo de um quadrado de flores (que não eram naturais) em frente ao pastor. Achei lindo e quis fazer um arco de flores para nós, mas com flores naturais e bastante verde. Assisti a outro casamento em que os pilares dos arranjos do corredor eram de vidro e iluminados. Então comecei a pensar como seriam os nossos. Fui a algumas floriculturas a procura de bons preços e de quem estivesse disposto a materializar cada detalhe dos meus sonhos.

Na terceira tentativa, encontrei uma pequena floricultura no caminho da creche em que eu trabalhava. Na entrada do estabelecimento, havia uns suportes (pedestais) que mais pareciam colunas romanas, com lindos arranjos de flores. Perguntei se aqueles suportes poderiam ser usados nos corredores da igreja, no meu casamento, e a Rita, a proprietária, disse que sim e também concordou em fazer o arco de flores, e tudo por um ótimo preço. Ela era muito simpática e atenciosa, e vibrava comigo imaginando como tudo ficaria lindo.

Pendurada na parede havia a foto de um bebê. Quando perguntei quem era, lágrimas rolaram pela face da mulher. “É minha bebezinha. Ela morreu no ano passado com quatro meses de vida. Os médicos não descobriram o motivo. Dizem que foi morte súbita.”

Então, falei-lhe sobre a volta de Jesus e a ressurreição. Quase todos os dias eu passava lá, conversávamos sobre o casamento e sobre as promessas de Deus de nos dar a vida eterna em companhia daqueles a quem amamos. Tenho certeza de que foi Deus quem me encaminhou especificamente para aquela floricultura.

O tempo voava e eu vivia sonhando acordada. Queria que tudo saísse do jeito que eu havia planejado. A ansiedade estava tomando conta de mim. Para os homens, esses detalhes talvez não importem tanto, mas para a maioria das mulheres o dia do casamento e de se vestir de noiva é como viver um dia de princesa parecido com os contos de fada da infância.

Eu estava vivendo um sonho e quase nem mais pensava nos dias que se seguiriam à cerimônia e à festa; em nosso futuro. Achava que o assunto do apartamento estava caminhando muito bem e logo tudo estaria finalmente resolvido. Eu só pensava no “grande dia”; no momento em que eu entraria na igreja vestida de branco.

A Rita disse para não me preocupar com a decoração, pois as noivas ficam tão nervosas durante a cerimônia que praticamente não notam nada. Foi a pior coisa que ela poderia ter me dito, porque coloquei na cabeça que iria reparar em cada detalhe! Só uma coisa poderia estragar tudo: a possibilidade de eu chorar. Se começo a chorar, não paro mais. Perco o controle das emoções. Todos os dias eu orava pedindo a Jesus que não me deixasse chorar. Era um pedido especial e eu sabia que somente Deus poderia segurar minhas lágrimas.

Quanto mais o grande dia se aproximava, mas a correria para deixar tudo pronto se intensificava. Para piorar minha tensão, tivemos alguns contratempos com coisas muito mais importantes do que a decoração. Simplesmente duas semanas antes do dia do casamento, os responsáveis pelo buffet que eu havia contratado me disseram que não seria mais possível realizar a festa no salão combinado.

– Como assim?! Faltam apenas duas semanas para o casamento, os convites foram distribuídos... O que vou fazer?

Os cozinheiros da festa haviam prometido alugar um belo salão com vista para a ponte Hercílio Luz, no clube da empresa da qual eles eram funcionários. Mas, àquelas alturas, eles tinham descoberto que só poderiam usar o salão pagando uma taxa irrisória se fosse para a família deles. Do contrário, o valor cobrado seria muito maior. Nossos recursos já estavam comprometidos e ficamos sem saber o que fazer.

Há situações em que só nos resta chorar. E foi isso mesmo o que fiz. Procurei a diretora do clube, expliquei-lhe a situação e comecei a chorar diante dela. Mesmo assim, ela disse que só poderia me ajudar com cinquenta por cento de desconto. Foi uma ajuda válida e valeu cada lágrima.

Estava tudo quase perfeito. Mas, por mais que tentemos, parece que sempre ficam detalhes para resolver no último dia, no último momento. De manhã, eu quis ir até a igreja para ver como estava a decoração. Quando cheguei com o Michelson, fiquei totalmente frustrada. Eu havia combinado que seriam flores em tom pastel, mas os decoradores estavam colocando todo tipo de flores e cores. Tive a impressão de que deviam ser sobras de outro casamento realizado no sábado, pois, além de tudo, estavam um pouco murchas. Quando vi os pedestais no corredor, desanimei de vez. Disseram-me que não era possível usar os que eu havia escolhido porque eram muito pesados. Em lugar deles, acabaram levando uns de madeira rústica. O Michelson percebeu meu olhar de tristeza e decepção. Então, as palavras dele conseguiram me animar e despertar para a realidade:

– Débora, vai ficar bonito. As cores fortes darão mais vida, as fotos ficarão mais bonitas. Ninguém vai reparar nos pedestais. Não fique preocupada; confie neles. Eles sabem o que estão fazendo.

Aquelas palavras me fizeram pensar no que realmente era importante. Fiquei tão feliz em olhar para meu noivo e por tê-lo ao meu lado! Agradeci a Deus porque eu estava vivendo aquele dia e iria me casar com o amor da minha vida, um homem tão bom e temente a Deus.

Apesar de todos os detalhes não terem ficado como eu havia planejado, consegui relaxar e pensar que depois de tudo o que ficaria na memória das pessoas eram a impressão do nosso amor, a felicidade e a presença de Deus.

Na verdade, acho que não foram somente as palavras do meu noivo que me acalmaram, mas, sim, a atitude dele. Ele me transmitia segurança. O Michelson conseguia sempre ser otimista e dificilmente perdia a calma. Eu era bastante ansiosa e muitas vezes via as dificuldades maiores do que realmente eram, só para perceber, no fim das contas, que a maioria dos meus temores não se concretizava. Com o tempo, fui aprendendo a me entregar realmente nas mãos de Deus e parar de antecipar sofrimentos, uma vez que “Ele tem cuidado de [nós]” (1 Pedro 5:7) e sempre convida: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e Eu vos aliviarei” (Mateus 11:28).

Depois de todo o estresse e da correria, mal acreditei que havia chegado à porta da Igreja Adventista de Campinas, em São José, pontualmente às dezenove horas, como combinado. Estava ali pronta para entrar, quando vieram correndo me avisar para não sair do carro porque o pai do Michelson havia ido levar o bolo ao salão de festas e estava preso no congestionamento de Verão, na BR 101, próximo à entrada de Florianópolis. Naquele horário, os turistas costumavam sair das praias e o trânsito ficava extremamente lento. Por isso, fiquei ali esperando por uma hora até o pai do noivo chegar! Só que, como a noiva sempre leva a culpa, todos pensaram que eu havia chegado atrasada para a cerimônia.

Finalmente, ouvi a marcha nupcial. Parecia um sonho! Aquela música me encheu de emoção, e quando fitei o Michelson com olhar de cumplicidade, as lágrimas ameaçaram jorrar. Imediatamente clamei a Deus em pensamento e O lembrei do nosso acordo: “Por favor, Senhor! Não me deixe chorar!” “Engoli” o choro e continuei sorrindo.


A cerimônia foi singela, mas o pastor Ademar Paim conseguiu tocar o coração dos convidados. À porta, pude notar que todos estavam emocionados e transmitiam sentimentos de carinho e contentamento. Foi muito gostoso receber tantos abraços amistosos e sinceros. Parecia que as pessoas estavam exalando amor. O clima era de felicidade e esperança, não somente em relação a nós dois. Pude sentir que o sermão e as músicas – uma das quais cantada pela Emanuela – haviam promovido um verdadeiro reavivamento entre as famílias.

Geralmente, os casais dizem que não conseguem comer em sua festa de casamento. No entanto, toda a tensão daquele dia havia me deixado faminta. Agora eu estava tranquila e realizada. Fiz questão de comer muito bem e de aproveitar cada momento. Infelizmente, o tempo passou rapidamente e algumas pessoas tiveram que ir embora – principalmente alguns parentes que moravam longe – sem conversar conosco. Tive a sensação de que algo estava faltando. Mas era uma grande ilusão pensar que seria possível dar atenção a todos os duzentos convidados.

No dia seguinte, dois jovens felizes e cheios de sonhos caminhavam de mãos dadas por uma praia deserta, em Garopaba, SC. O dia estava nublado e não muito quente, fazendo com que a praia fosse só “nossa”. Acho que estava estampado em nosso rosto: “Recém-casados!” Estávamos simplesmente “abobalhados”. Às vezes, fixávamos o olhar um no outro e caíamos na risada. Então o Michelson me abraçava e sussurrava: “Minha esposa”, e eu devolvia: “Meu marido.” Era como se estivéssemos dizendo repetidamente: “Casei! Casei! Casamos! Nem acredito!”

Minha tia Roseli havia sido muito bondosa em nos emprestar por uma semana a casa de praia da família dela. Ali tivemos uma amostra do que é viver casados e ter nosso próprio cantinho para construir nova vida juntos. Foram momentos preciosos e inesquecíveis. Uma confirmação de que os planos de Deus para o ser humano sempre são os melhores.


Depois que a lua de mel acabou, tivemos que voltar para a casa dos meus pais e ajeitar nossos poucos pertences no “meu” quarto: a cama de casal que havíamos ganhado de presente do tio João, uma estante de livros do Michelson, a escrivaninha usada dele e um aparelho de TV velho que ele tinha ganhado quando era criança. Os outros presentes ficaram encaixotados na sala de estar, até que nosso apartamento ficasse pronto e pudéssemos levar tudo para lá. Era só uma questão de meses, pensávamos, sem saber o que nos aguardava.

Com o passar do tempo, nossa esperança de morar no apartamento foi se transformando em angústia. Cada vez que chegava a data marcada para a entrega das chaves, havia nova remarcação de datas. Não víamos progresso na construção, apesar de os pedreiros estarem na obra. Dos quatro prédios do projeto, apenas um tinha sido levantado, e não era o nosso. A construtora alegava muita inadimplência, mas nós estávamos pagando fielmente em dia, com muito sacrifício. A maior parte do salário do Michelson era usada para pagar as prestações e o restante apenas cobria as despesas dele com transporte e alimentação. Ou seja, ele estava trabalhando apenas para pagar o apartamento. Se quiséssemos comprar algo ou passear, tinha que ser com o meu salário mínimo. Por isso, tudo era bem calculado e racionado.

Meus pais demonstraram muita bondade em nos acolher. Morávamos na casa deles sem contribuir com nada. Aquela situação era muito desconfortável para nós.

O fim do ano foi chegando e pude ver que o cansaço e o desânimo estavam quase vencendo meu marido. Ele estava profissionalmente insatisfeito, pois havia se preparado para ser jornalista e não professor de adolescentes. Quando ele chegava em casa, depois do longo percurso em um ônibus lotado, eu percebia no rosto abatido sinais de frustração. Falar do “Plano B” era única coisa que o reanimava.

Fazia algum tempo que o Michelson estava se comunicando com um amigo que cursava Teologia no Chile. Ele até havia comprado a Lição da Escola Sabatina em espanhol e estava tomando algumas aulas com um colega professor que tinha morado na Argentina. O valor das mensalidades da faculdade adventista lá era mais baixo do que no Brasil. Então, o “Plano B” consistia em vender o apartamento quando ele ficasse pronto, a fim de que, com o dinheiro, pudéssemos começar os estudos no outro país, no ano seguinte. Poderíamos ter guardado dinheiro naquele ano, mas acho que o Michelson decidiu investir no apartamento mais por minha causa, para satisfazer meu desejo de ter um lar.


"Meu" quarto, nossa primeira "casa"

Mas o sonho nunca se concretizou. O ano terminou e ainda morávamos no “meu” quarto. Colocamos um anúncio no jornal para vender o apartamento “em construção”, mas ninguém se interessou em comprá-lo naquelas condições.

Estávamos agora meio desnorteados. O contrato previa devolução de certa quantia do dinheiro pago, caso desistíssemos do plano. Mas iríamos perder boa parte do valor investido. Eu estava esperando saber que rumo iríamos tomar, para decidir onde faria minha faculdade. Enquanto esperava, me matriculei no curso de Pedagogia da UFSC, como aluna especial. A vantagem era que, se depois eu passasse no vestibular, poderia eliminar as matérias que já havia cursado.

Em fevereiro do ano seguinte, nossas esperanças em relação ao apartamento foram totalmente desfeitas. A construtora declarou falência e o dono acabou se suicidando. Agora não tínhamos nem mesmo a chance de reaver parte do dinheiro. Com isso, o “Plano B” também afundou. Não tínhamos um “Plano C” – mas não sabíamos que Deus tinha.

Quando o Michelson chegou em casa com a triste notícia da falência da construtora, meu mundo desabou. Foi muito difícil dormir naquela noite. De manhã, meus olhos estavam inchados de tanto chorar. Quis perguntar a Jesus por que Ele havia permitido tudo aquilo. Mas me lembrei de que quando fechamos o negócio não havíamos consultado a Deus como deveríamos. Apesar de todos os sinais contrários, fui teimosa e escolhi ser iludida. Coloquei minha vontade acima de tudo.

Mas Deus é muito bom e nunca deixa de nos amar. Embora às vezes tenha que permitir que soframos as consequências de nossas más escolhas, Ele nunca nos abandona. Mais uma vez pude sentir a mão dEle segurar a minha. Depois de orar, tirei da caixinha de promessas um cartãozinho com um verso bíblico: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmo 30:5). Aquela “noite” parecia tão longa, mas ainda teria fim.

Decidimos ir até a Associação Catarinense conversar com o diretor de educação. Queríamos expor nossa situação e pedir que ele ajudasse o Michelson a conseguir mais aulas ou alguma maneira de ele obter ajuda para um aluguel. Na verdade, queríamos mais era desabafar e ver se ele poderia nos dar algum conselho, apontar uma luz no fim do túnel que para nós parecia ficar cada vez mais escuro e estreito.

No trajeto para lá, ainda no ônibus, senti mais uma vez o toque de Jesus me consolando. Sintonizei meu rádio portátil na emissora adventista Novo Tempo, coloquei os fones de ouvido e comecei a ouvir uma música muito bonita. Senti como se aquela letra houvesse sido escrita especialmente para mim. Ela falava de uma promessa bíblica muito preciosa: “Serei contigo na alegria ou na dor. Quando orares, Eu te ouvirei. Lutarei nas batalhas que o mal te trouxer. Serei contigo, serei contigo, pois Eu sou teu Deus.” A música era cantada pelo grupo Harmuss, mas, para mim, parecia a voz de Deus me falando ao coração: “Filha, Eu estou vendo tudo; a vida de vocês Me pertence. Eu estou no controle. Nunca vou deixá-la.”

Ali, no ônibus, as lágrimas brotaram mais uma vez. O Michelson me olhou com compaixão, apertou mais forte a minha mão e encostei a cabeça no ombro dele. Ele ainda não sabia, mas Deus já estava me confortando. Eu sentia que Deus tinha reservado algo de bom para o nosso futuro, só não sabia exatamente o quê.

O diretor do departamento de educação foi muito atencioso conosco e demonstrou grande empatia. Depois de pensar um pouco sobre como poderia nos ajudar, ele fez algumas ligações telefônicas. Não havia espaço para o Michelson dar mais aulas, mas existia a possibilidade de ele trabalhar em algo que lhe daria mais prazer. Naquela época, a rádio Novo Tempo de Florianópolis tinha sido recém-inaugurada e estava precisando de jornalista para produzir um jornal diário. O diretor da rádio ficou interessado e marcou uma entrevista com meu marido. Na semana seguinte, ele já era o novo membro da equipe da emissora.

Como a rádio estava começando suas atividades, tinha orçamento apertado. Por isso, o Michelson iria trabalhar somente algumas horas por dia. O salário aumentou um pouco, mas o que mais lhe trazia satisfação era o fato de poder atuar na área de formação dele. Fiquei feliz em vê-lo mais animado.

Foram feitos arranjos na escola para que o horário das aulas não coincidisse com o expediente na rádio. Mesmo assim, era difícil chegar a tempo nos dois lugares. O Michelson precisava sair correndo da escola, pegar ônibus e cruzar a ponte a fim de chegar à rádio. Depois do almoço com tempo cronometrado, ele ajudava a apresentar o jornal ao vivo e em seguida voltava para a escola. Alguns dias nessa correria foram suficientes para o Michelson decidir:

– Vamos comprar um Fusca.

– Um Fusca?! Eu não gosto do cheiro de Fusca. Não pode ser um Chevette, um Fiat 147, qualquer outro?

– Não. Meu pai começou com um Fusca. Todo mundo na minha família começou com um Fusca.

– Detesto barulho de Fusca.

– Você vai se acostumar. O Fusca é um carro forte, de manutenção barata. Não podemos ter um carro velho que fique quebrando a toda hora. Vamos guardar dinheiro neste ano e o Fusca é só para nos ajudar em nossas necessidades. Será um veículo missionário.

O Fusca azul 1973
Assim, nosso fusquinha azul-claro se tornou um grande “companheiro” de atividades, de viagens para Criciúma e de trabalho missionário. Eu até estava começando a gostar dele. Sem dúvida, era bem melhor do que andar de ônibus. Para os admiradores de Fuscas, ele era lindo. Tinha sido fabricado em 1973 e era todo original. As calotas eram cromadas e o pegador da marcha tinha um caranguejo dentro do plástico transparente. Eu achava superbrega.

A verdade é que o Fusca nos ajudava a ganhar tempo e, com ele, conseguíamos dar mais estudos bíblicos. Se algo estava nos trazendo alegria e satisfação no meio daquele turbilhão de desapontamentos, eram as pessoas sinceras que Deus colocava em nosso caminho para estudar a Bíblia.

Aquele grupo de estudos que começou com minhas colegas da creche já havia rendido frutos. A Simone e a Alessandra entregaram a vida a Jesus e foram batizadas naquele mesmo ano. O Pedro Daniel e a esposa, Salete, ainda não haviam tomado a mesma decisão das duas, mas sabíamos que eles eram pessoas especiais e que no momento certo a semente da Palavra de Deus germinaria também no coração deles. E foi o que aconteceu algum tempo depois. A semente frutificou mesmo!

Em janeiro de 2011, quando o Michelson e eu visitamos a Igreja Adventista do Rio Grande, em Palhoça (não muito longe da Barra do Aririú), encontramos lá o Pedro, a Salete, a Alessandra e o esposo dela. Mas não foi apenas isso. O filho da Salete e a filha da Alessandra, Filipe e Monique, na época dos estudos bíblicos eram apenas crianças. Em 2011, os dois, além de noivos, haviam se tornado líderes daquela igreja em fase de organização. Eles fazem um trabalho parecido com o que meu esposo e eu fazíamos na Barra. Vimos o cumprimento da promessa de Eclesiastes 11:1: “Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás.”

Frutos da classe bíblica iniciada com colegas da creche; no centro, Filipe e Monique

Depois da conversão da Simone e da Alessandra, ainda estudamos a Bíblia com mais dois casais. Certo dia, encontrei no ônibus uma amiga de infância. Deixei com ela um folheto bíblico e anotei nele meu telefone. Ela ligou alguns dias depois pedindo estudos bíblicos. Ficamos muito felizes em poder iniciar os estudos com ela e o esposo. Eles tinham verdadeira sede da Palavra de Deus e muitas vezes nos emocionamos conversando sobre o amor de Jesus ao dar a vida por nós. Eles também se tornaram grandes líderes da igreja e levaram a muitas pessoas o conhecimento da mensagem de salvação. Em 2010, a filha mais velha desse casal foi estudar no Unasp e se tornou excelente colportora.

O outro casal com quem estudamos a Bíblia era formado por dois jovens que haviam aceitado o convite para assistir a uma série de palestras sobre saúde. Eles enfrentaram alguns obstáculos para conseguir cumprir a vontade de Deus, como o trabalho no sábado, por exemplo. Mas pouco a pouco Deus foi abrindo as portas e até uma nova profissão o moço pôde aprender. Depois de muitas lutas vencidas pelo poder de Deus, eles puderam ser batizados. Infelizmente, como ocorreu na parábola do semeador, eles acabaram permitindo que os problemas sufocassem a semente e abandonaram o convívio dos irmãos da igreja. Mas ainda podemos ter surpresas, como já aconteceu e acontece com outras pessoas que voltaram para Jesus. Deus por certo deve estar trabalhando no coração deles, de maneiras que nem imaginamos.

Envolvendo-nos com a salvação de outras pessoas não tínhamos tempo para lamentar nossa situação. Estávamos felizes e ocupados. Depois da fase do choro e dos questionamentos, passamos a sentir paz, contentamento e vivemos com a esperança de que Deus nos reservava um futuro melhor. Esse mesmo Deus que até ali havia conduzido nossas vidas, tornando-nos uma só carne e um só coração.