quinta-feira, janeiro 05, 2006

Capítulo 0 - Salvo da morte

Michelson Borges

Tremendo de medo, debaixo daquela cama hospitalar, eu só pensava numa coisa: “Se abrirem minha cabeça, nunca mais vou conseguir desenhar.” Eu tinha apenas nove anos de idade e meu prognóstico não era nada animador: segundo os especialistas do Hospital de Caridade, em Florianópolis, eu sofria de hidrocefalia e precisava ser urgentemente submetido a uma cirurgia, caso contrário, minhas dores de cabeça só piorariam e meu crânio poderia sofrer um inchaço, em decorrência do acúmulo de líquido cefalorraquidiano.

Antes da adolescência, nunca fui um garoto muito forte. Sofria com crises de asma e, de vez em quando, sentia fraqueza durante atividades físicas na escola, chegando a desmaiar uma ou duas vezes. Além disso, as dores de cabeça incomodavam bastante. Preocupados com minha condição, meus pais me levaram a um neurologista em nossa cidade, Criciúma, SC. Depois de me examinar, o médico pediu que eu saísse do consultório para que ele pudesse conversar com minha mãe. Nessa época, eu tinha oito anos. Não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas me lembro de que pensei: “Se ele pediu para eu sair é porque a coisa é séria.”

O diagnóstico foi tão assustador que minha mãe quase perdeu o bebê de três meses que carregava no ventre, minha irmãzinha Emanuela (aliás, o nome dela – que se fosse menino se chamaria Emanuel – foi uma promessa fervorosa da minha mãe em favor da minha cura). Segundo o médico, eu estava com um tumor no cérebro e precisava ser operado urgentemente. Meus pais haviam perdido o primeiro filho, o Marcelinho, com poucos meses de vida. Nem preciso dizer que meu quadro os deixou angustiados e os fez reviver a dor sentida poucos anos antes.

Inconformados com o diagnóstico, eles fizeram planos de me levar para a capital, a fim de me submeter a mais exames. Para mim, que não sabia da gravidade da situação, de certa forma, aquilo tudo foi bem divertido. Estava recebendo bastante atenção e conhecendo pessoas e locais diferentes. As injeções, os medicamentos e os exames incomodavam um pouco, mas até ali não tinha sido necessário nenhum exame mais invasivo ou dolorido. No hospital em que fiquei internado, em Criciúma, pude desenhar bastante, ler revistinhas que meu pai comprava para mim e, o melhor de tudo, passar tempo com minha mãe, brincando e conversando com ela. Ela foi a melhor acompanhante do mundo. Meu anjo.

Mas, como disse, meus pais não quiseram confiar no diagnóstico daquele médico. Fizeram algumas economias e foram em busca de uma “segunda opinião”.

*****

Novembro de 1981. Enquanto percorríamos os quase duzentos quilômetros que separam Criciúma de Florianópolis, eu passava o tempo anotando o nome dos rios pelo caminho e a extensão das pontes, informada nas placas. Quando não conseguia anotar alguma, meus pais me ajudavam (guardo até hoje esse caderno de anotações). Foram momentos especiais para nós, apesar da clara expressão de preocupação no rosto da minha mãe e da separação das minhas irmãs – a Michela, com cinco anos de idade, ficou na casa da minha avó materna, e chorou bastante com a separação; a Emanuela, com seis meses, ficou na casa de uma tia.

Era a primeira vez que eu viajava para um local tão “distante”. A viagem durava perto de três horas, mas me pareceu uma eternidade. Estava ansioso para conhecer a capital do meu Estado. Quando transpusemos a última curva da via expressa que leva à Ilha, pude avistar a linda ponte pênsil de ferro. Foi amor à primeira vista. Imediatamente me pus a copiá-la em meu caderno de desenho, rabiscando cada detalhe e anotando a última informação em meu caderno: ponte Hercílio Luz, 820 metros. Graças a Deus, uma década depois, eu voltaria àquele lugar, mas em outras circunstâncias...

Minha família não estava em boas condições financeiras na época, mesmo assim, meu pai me internou num quarto particular. Assim, eu poderia ficar com minha mãe o tempo todo. Ele teve que voltar para Criciúma no mesmo dia, pois precisava trabalhar. Foi triste vê-lo ir embora com nosso Chevette vermelho de faróis amarelos. Da sacada do hospital, que fica num local mais alto e retirado do centro da cidade, pude acompanhar o carro desaparecendo ao longe, sobre a ponte. Deve ter sido difícil para ele também ter que nos deixar ali por nove dias a fim de cuidar dos negócios, podendo falar conosco apenas por telefone.

Equipe de enfermeiros do Hospital de Caridade, em 1981

Com o tempo, fiz amizade com todos os funcionários daquela ala do hospital. Alguns até pensavam que minha mãe é que estava internada, pois eu vivia passeando com os enfermeiros pelas dependências do antigo prédio amarelo de dois séculos, uma típica construção em estilo açoriano. Conheci quase cada canto da instituição. Fiz apelos para que um dos meus novos amigos de jaleco branco deixasse o cigarro (que ele fumava escondido e me pedia para não contar para ninguém), e achei graça dos apelidos que um deles deu aos meus bonecos Falcon, como “Tranca Rua” e “Zé Caveira”, que depois fiquei sabendo serem “entidades” da umbanda.

Tive que ficar internado por duas semanas, até que chegou o dia do exame mais delicado, para o qual eu teria que ser submetido à anestesia geral. Durante o procedimento, seria feita uma pequena incisão na região da virilha e inserido via artéria um líquido com o qual fariam o mapeamento do meu cérebro. Enquanto aguardava o momento de ser anestesiado, eu segurava na mão da minha mãe e dizia: “Quer ver como sou forte? Vou resistir à anestesia. Não vou dormir. Não vou dorm...”

Mais alguns dias se passaram, até que minha mãe recebeu a má notícia. O diagnóstico agora era outro, mas as perspectivas igualmente desalentadoras: eu estava com hidrocefalia, uma doença que leva ao acúmulo de líquido no interior do crânio e que faz aumentar a pressão intracraniana, podendo causar lesões no tecido cerebral e inchaço na cabeça. Antes que a situação piorasse, eu deveria ser submetido a uma cirurgia. Minha mãe telefonou para meu pai, pois os médicos queriam me operar na segunda-feira seguinte. Ele voltou a Florianópolis imediatamente.

Dessa vez, meus pais resolveram me colocar a par da situação. Quando soube que eu precisava ser operado, lembrei-me de que em minhas andanças pelo hospital havia visto crianças com a cabeça raspada e com riscos vermelhos sobre a pele, indicando os locais em que seriam feitos os cortes. Fiquei apavorado ao pensar que também teria que passar por aquilo. Eu sabia que quase todas as pessoas que tinham o crânio operado acabavam ficando com alguma sequela, e no mesmo instante pensei: “E se eu não mais puder desenhar? E se minha mão ficar trêmula?”

Era manhã de domingo e minha mãe me levou até a capela do hospital para assistirmos à missa. No caminho, passei mal e pedi para me levarem de volta para o quarto. Quando cheguei lá, corri para baixo da cama e comecei a chorar compulsivamente. Disse que não queria que abrissem minha cabeça e me recusava a sair dali. Eu estava realmente apavorado. Com muito tato e paciência, aquele amigo enfermeiro (o que fumava escondido) me acalmou e me convenceu a sair debaixo da cama.

Meu pai pediu aos médicos para me liberarem, a fim de que pudéssemos participar do casamento de uma tia em Criciúma. Depois voltaríamos para a cirurgia. O médico concordou, advertindo-nos que não demorássemos a voltar, caso contrário, meu quadro pioraria.

A viagem de volta foi bastante triste. Agora eu sabia da minha situação e ficava pensando se eu teria futuro, se chegaria a ficar adulto, se teria mais alguns anos de vida ou se viveria como um inválido. Muitas coisas me passaram pela cabeça. Quando chegamos a Criciúma, lágrimas brotaram dos meus olhos. Estava com saudades das minhas irmãs, da minha casa e da minha cidade. Quando minha mãe me viu chorando, ela também não conseguiu segurar as lágrimas. Estávamos todos muito emocionados.

O fato é que nunca mais voltamos ao Hospital de Caridade. Meu pai tomou a decisão corajosa e ousada de me levar a outro especialista, desta vez em Porto Alegre, RS. Segundo diziam, era o melhor neurologista da Região Sul.

Outra viagem, desta vez mais longa. Mais gastos, filas de espera e, finalmente, a consulta.

Fui submetido a outra bateria de exames, e, depois, o médico chamou meus pais para conversar. E nem me pediu para sair da sala.

– Pais, os exames não acusam nada. Seu filho está perfeitamente bem. Tudo normal. Creio que ele não terá mais dores de cabeça, nem desmaios. Podem voltar para casa tranquilos.

De fato, a previsão do médico se confirmou. Nunca mais tive aquelas dores de cabeça horríveis nem os desmaios. À medida que os anos se passaram, fui ficando forte e até as crises de asma cessaram. Tive uma vida perfeitamente normal.

Minha mãe crê que Deus operou um milagre e me salvou da morte. De qualquer forma, creio que Ele tinha planos para minha vida.

2 comentários:

Débora Camargos disse...

Deus é mais!

Raphaela disse...

Que resposta de Deus a sua família Michelson... Deus conhece o que vai em cada coração.