– Tenho pena de você, Tati. Não entendo como isso foi lhe acontecer. Logo você, uma pessoa tão inteligente, se deixar levar por uns ignorantes! Parece que fizeram lavagem cerebral!
Confesso que fiquei com muita raiva ao ouvir o comentário da Teca. A forma como ela falou atingiu em cheio minha vaidade e meu orgulho. A vontade que eu tinha era de ofendê-la também, atacando algum ponto fraco dela. Mas eu pensava como ela até bem pouco tempo antes, por isso me contive e me esforcei ao máximo para não deixar transparecer meus sentimentos. Com a maior calma possível, respondi:
– Guarde sua pena para você mesma, Teca. Estou muito feliz porque agora conheço a Deus de verdade. Você ainda precisa conhecê-Lo.
Apesar do meu “esforço diplomático”, a Teca não gostou da resposta e notei que ela também teve que se conter para não brigar comigo. Isso vinha acontecendo com certa frequência e nossa amizade já não era a mesma. Até ali, havíamos sido cúmplices em tudo. Quando uma sofria, a outra sofria junto. A alegria dela também passava a ser minha, e não fazíamos planos individuais. Mas, pela primeira vez, eu estava sozinha e incompreendida pela minha melhor amiga. De todas as críticas que ouvi, as que doíam mais eram as da Teca. Sua hostilidade me feria profundamente.
Quando meu pai, minha amiga que estava hospedada em nossa casa e eu iniciamos os estudos bíblicos com os adventistas, a Teca também participou. Assistiu umas três vezes, mas seu pensamento estava longe. Na verdade, ela ia apenas para me acompanhar. Até que o namorado fez tantas críticas que a persuadiu a desistir. E como minha outra amiga teve que ir embora, ficamos apenas meu pai e eu estudando a Bíblia com os dois “crentes”.
De início, eu havia construído um muro de desconfianças. No fundo, menosprezava a inteligência e as crenças dos dois instrutores bíblicos. Sentia repulsa só de pensar em ser como eles. Queria fazer os estudos apenas para conhecer um pouco mais a Bíblia, mas jamais havia passado pela minha cabeça mudar de religião ou abandonar minha maneira de ser. Se Deus não houvesse me impressionado antes, despertando meu interesse pelas Escrituras e pelo Apocalipse, especificamente, talvez nem mesmo tivesse concordado em estudar com eles.
O bairro em que nasci e cresci – a Barra do Aririú, no município de Palhoça – é predominantemente católico. Uma comunidade açoriana onde por muito tempo a maior fonte de renda foi a pesca. O catolicismo e o mar influenciam muito o comportamento do povo. Todos os anos são realizados bailes, procissões marítimas, novenas, festas religiosas, e superstições e lendas são contadas pelos pescadores, de geração em geração. Todos se conhecem e parece que devem satisfação do que fazem uns aos outros.
Vista aérea da Barra do Aririú, Palhoça, SC |
Quando a Igreja Adventista do Sétimo Dia foi estabelecida no bairro, o preconceito não foi diferente. Era uma pequena casa vermelha, de madeira e com janelas e portas azuis. Ficava na parte da frente do terreno do senhor Gilberto, que então era o líder do grupo. A casa dele estava em construção, nos fundos do terreno.
Certa vez, passava por ali com minhas tias e elas comentaram: “Mais uma igreja de loucos. Mas essa aí é do filho do Gregório. É a igreja do Beto Louco.” Assim ficou conhecida, de início, a igreja adventista na Barra do Aririú – a “igreja do Beto Louco”.
No começo, era apenas um grupo, formado por três famílias. Os únicos jovens eram o Paulo, de dezesseis anos, filho do Gilberto; o Carlinhos, de vinte e dois anos, que nos ministrava os estudos bíblicos; e a Rafaela, de dezoito anos, recém-convertida [nomes alterados].
No dia em que vi a Rafaela vestindo saia longa e com a Bíblia na mão, quase não acreditei. Admirada, acompanhei-a com os olhos. Queria ter certeza de que era ela mesma. A Rafaela não tinha boa fama porque andava com uns jovens conhecidos por usar drogas. Sempre que eu a via estava gargalhando sarcasticamente de alguém, ou com uma expressão irada e revoltada que me dava medo. Procurava passar a distância, sem encará-la, para que ela não falasse nada para mim e me envergonhasse em público.
Quando a conheci melhor, percebi como a havia julgado mal. Ela era uma jovem sensível e carente, mas um pouco revoltada com a vida. Depois que conheceu a Jesus, seu lado mais delicado aflorou. Era outra pessoa. A expressão do rosto mudou, os cabelos crespos e sempre desgrenhados estavam agora ajeitados e lindos cachos escuros lhe caiam sobre os ombros. Não cansava de falar de Jesus e de ler a Bíblia. Ela era uma pedra preciosa, mas que precisava – e quem não precisa? – ser lapidada pelo Criador.
Assim como aconteceu com a Rafaela, Jesus foi mudando meu coração. As barreiras que eu havia levantado contra o verdadeiro cristianismo foram sendo pouco a pouco derrubadas a cada estudo bíblico.
– Vocês são daquela igreja ali, a Assembleia de Deus? – perguntei aos dois instrutores bíblicos, na segunda vez que foram à nossa casa.
– Não. Somos adventistas do sétimo dia.
– Nunca ouvi falar. Onde fica essa igreja?
– É aquela, mais perto da praia, da pracinha... Uma casa vermelha.
– Ah, sei... (e completei mentalmente: a do Beto Louco).
Tentei afastar esse pensamento e logo no primeiro estudo, antes de prosseguirmos, perguntei sobre o que havia me intrigado na infância:
– Me desculpem, mas por que vocês gritam daquela maneira na igreja? – eu achava que os adventistas faziam o culto da mesma forma que a Assembleia de Deus.
– Nós não gritamos. Não falamos línguas estranhas. Não daquele jeito, pois não somos pentecostais.
– Não são o quê?
Eles me explicaram o que aconteceu no dia de Pentecostes, lá em Jerusalém, conforme narrado no livro de Atos, capítulo 2. Falaram sobre o poder do Espírito Santo que foi colocado sobre os discípulos. Por causa dessa capacitação divina, eles puderam falar em outras línguas – de cada nacionalidade que estava na cidade, naquele dia –, a fim de que todos pudessem compreender a pregação do evangelho. Infelizmente, alguns interpretam erroneamente a Bíblia e fazem justamente o que o apóstolo Paulo diz para não fazer, em 1 Coríntios 14.
– Na Igreja Adventista já foi manifestado o verdadeiro dom de línguas, quando pregadores conseguiram falar na língua de quem os ouvias sem nunca ter estudado o idioma. Mas aqui, entre nós, não há essa necessidade. Todos falamos o português. O Espírito Santo Se manifesta de outras maneiras.
Eu ficava maravilhada porque eles sempre abriam a Bíblia para responder nossas perguntas. Mesmo assim, quis conferir por mim mesma se não havia algo nas Escrituras que os contradissesse. Comecei a ler sistematicamente a Palavra de Deus, sozinha. Só que, quanto mais eu lia, mais obtinha a confirmação de tudo o que estávamos aprendendo.
Foram tantas descobertas importantes que eu não poderia continuar sendo a mesma pessoa. Como nunca antes, entendi o significado do sacrifício de Jesus pela humanidade. Isso porque eu desprezava o livro de Gênesis, considerando a história de Adão e Eva apenas um mito. Mas é exatamente ali que está registrada a história do início do pecado na Terra – uma triste história que na verdade se originou no Céu, quando o anjo Lúcifer desafiou o governo do Todo-poderoso Deus. Meus olhos foram abertos para uma realidade que eu ignorava, como se eu estivesse acordando de um transe que não me deixava perceber a vida além das futilidades e desgraças deste mundo.
Agora tudo fazia sentido. Deus não criou um planeta caótico, com sofrimento e morte. Houve um originador do mal. Mas Deus não abandonou Suas criaturas e sempre esteve atuando na história da humanidade, a ponto de Se tornar um de nós e morrer para nos resgatar. Um dia Ele voltará e remodelará este planeta para se tornar o lar dos que quiserem estar com Ele para sempre, amando-O e respeitando Sua santa lei, os Dez Mandamentos. Deus deixou tudo isso escrito na Bíblia para que pudéssemos ser alertados e conhecer a verdade, antes que Jesus volte.
Eu me sentia muito especial. Deus existe! E Ele me conhece e Se importa comigo. Ele ouviu minhas orações e Se revelou para mim! Ele queria que eu me preparasse para encontrá-Lo e eu achava que isso aconteceria muito em breve. Precisava contar isso às pessoas e não podia continuar levando a mesma vida. Eu devia fazer parte do povo de Deus – aquele povo a quem pedi para ser apresentada, naquela madrugada, enquanto lia o Apocalipse – e viver como ele vive.
Entretanto, isso não parecia nada fácil para mim. Depois de dois meses estudando a Bíblia, senti o desejo de conhecer a igreja daqueles dois missionários. Era uma quarta-feira de abril e a brisa que vinha do mar anunciava que o Outono havia chegado. Vesti calça e jaqueta jeans, peguei minha bicicleta e enquanto pedalava pelo caminho, fui pensando numa maneira de entrar na igreja sem ser vista por alguém da comunidade. Não sabia nem se teria coragem de entrar, quando chegasse lá.
Felizmente, não havia ninguém na rua quando cheguei em frente ao terreno da pequena casa de culto. Criei coragem e entrei. Tudo era muito arrumado e limpo, apesar da simplicidade. O ambiente era solene e tinha um cheirinho de flores. Assentei-me na última fileira de cadeiras de palha e fiquei quieta, observando tudo. Alguém sentou ao meu lado e me ajudou a manusear a Bíblia e o hinário. O culto foi calmo e racional e me causou boa impressão. Quando a reunião chegou ao fim, todos demonstraram satisfação e felicidade por eu estar ali. A maneira como me trataram fez com que eu desejasse voltar.
Fui embora com meu pai, pois ele havia saído exatamente naquele momento da escola onde lecionava. Ele também ficou contente por me ver ali. Embora ainda não estivesse decidido pelo batismo, já estava muito mais envolvido do que eu nas atividades da igreja, e acompanhava os irmãos em alguns eventos, inclusive em outras localidades.
Com o tempo, o orgulho que eu sentia e a vergonha de ser alvo de zombarias foram desaparecendo. Não podia mais esconder o que sentia por Jesus e a fé que eu tinha. Isso envolvia mudança em meu vestuário, na minha maneira de agir e nos lugares que eu frequentava.
Na primeira vez que vesti saia longa e me dirigi à igreja a pé, com a Bíblia na mão, as pessoas me olharam espantadas. Algumas simplesmente arregalaram os olhos, incrédulas. Outras zombavam, dizendo: “Aleluia! Glória a Deus!” Outras ainda postavam-se na janela e gritavam para as vizinhas: “Olha! Aquela menina virou crente.” “Vem ver! Não é a filha do ‘seu’ Zulmar?” Eu simplesmente ignorava os comentários e sorria por dentro, pensando: Ah, se eles soubessem o que eu sei! Como eu queria falar para todo mundo!
Mas parecia que falar sobre a Bíblia deixava as pessoas nervosas. Minha mãe não me permitia nem comentar. “Pode parar! Nem comece a falar disso, senão a gente vai brigar. Eu não quero saber!” Sempre que tentava falar sobre Jesus para ela eu acabava chorando, porque ela ficava muito irritada. Algo semelhante acontecia com a Teca. Ela era a única amiga que me havia restado. Mas certo dia também me disse: “Tati, para continuarmos nossa amizade, vamos combinar uma coisa: não me fale sobre Jesus. Senão, não vai dar certo.” Eu ficava muito triste, mas sabia que a Teca era sincera. Ela era tão bondosa... Considerava-a muito melhor do que eu.
Às vezes, minha mãe e a Teca se uniam para tentar me dissuadir. Tudo o que me restava dizer era que um dia elas entenderiam minha decisão. E um dia a resposta veio energicamente: “Se eu entrar nessa igreja, pode me internar porque que fiquei louca!” E a Teca completou: “Me interne também.” Ainda bem que certos tipos de pedidos acabam perdidos no tempo...
Eu sentia falta de conversar com alguém e me aproximei mais do Carlinhos e dos irmãos da igreja. Tinha vontade de pedir para os irmãos Carlinhos e Edaí não irem embora após os estudos bíblicos. Era tão gostoso conversar sobre a volta de Jesus, a ressurreição dos salvos, a Nova Terra... Parecia que o Carlinhos gostava tanto de responder minhas perguntas, e ele era tão eloquente, conhecedor das Escrituras, que me sentia bem com ele. Não percebia o tempo passar quando ele tocava hinos ao violão, na casa do irmão Gilberto. De todos, o hino que eu mais apreciava era o “Rude Cruz”. Era o que expressava melhor tudo o que eu sentia, e me deixava muito emocionada.
Eu estava fragilizada e experimentando sentimentos novos. Estava confusa sobre o que sentia pelo Carlinhos. Será que é algo fraterno ou é algo mais? Não, não... Não pode ser – eu lutava em pensamento. O Carlinhos não correspondia ao meu ideal de namorado. Era magro e mais baixo que eu (que já não me considerava alta). Além disso, ele não se vestia como jovem, o que lhe conferia aparência esquisita, antiquada. Mas ele tinha rosto bonito e um sorriso que encantava as pessoas.
Ainda não estava certa sobre o que sentia, mas nossa amizade cresceu e começamos a namorar. Entretanto, relutei para tornar isso público. Não queria sair pelas ruas de mãos dadas com o Carlinhos porque tinha receio de que meus amigos nos vissem e rissem dele. Eu também queria poupá-lo, mas não pude impedir isso por muito tempo. Todos na igreja sabiam. Meu pai aprovava. Então, por que não mostrar para todo mundo que éramos namorados? Aquele dia causou mais escândalo do que quando as pessoas do bairro souberam que eu havia me tornado “crente”. Alguns faziam comentários que humilhavam o Carlinhos (como eu havia previsto), outros riam ou olhavam para nós contrariados. Fiquei com pena dele pelas coisas que ouviu; mas a auto-estima dele era boa e ele quase não se importou. Com o tempo, todos acabaram se acostumando com a “situação”.
Apesar de eu achar que as pessoas não tinham o direito de opinar sobre nossa vida, elas tinham motivos para o espanto. Eu havia mudado radicalmente minha maneira de ser. Antes, era vista como esnobe e arrogante. Talvez porque fosse muito vaidosa – não saía de casa sem batom nos lábios; minhas roupas eram curtas e justas, bem praianas, comuns naquela localidade. Havia estudado em escola particular, no centro de Palhoça, embora meu pai fosse professor da escola do bairro. Ostentava mais do que podia. Usava roupas de marcas caras e algumas joias. A Teca e eu nos relacionávamos mais com pessoas que moravam no centro da cidade e frequentávamos os lugares mais “badalados”. A partir da quinta série, passei a estudar em Florianópolis, numa grande escola, e meu círculo de amizades e oportunidades não era o mesmo do pessoal da Barra. Por tudo isso, era vista com certo preconceito pelo povo dali. Ninguém esperava que eu – a filha esnobe do professor – fosse namorar um pobre pescador. Muito menos o mais humilde e esquisito, filho do coveiro – e pior de tudo: “crente”.
Débora com 15 anos de idade |
Existem duas influências, duas forças atuando no coração das pessoas: o bem e o mal. Há um conflito em andamento. Quando escolhemos seguir o bem – o caminho ensinado por Jesus –, inevitavelmente iremos nos distinguir do mundo que nos cerca. Era algo muito claro para mim. Entretanto, isso deve ser espontâneo. Deve brotar de um relacionamento de amor e amizade com Deus, pois nos tornamos parecidos com aqueles a quem admiramos e com quem convivemos intimamente.
No princípio, foi assim comigo. Estava tão grata a Jesus por ter sofrido por mim e me salvado que eu queria fazer qualquer coisa que O deixasse feliz. Além disso, estava empolgada com o cumprimento das profecias bíblicas e com a expectativa do fim dos tempos. Mas quando me dei conta, minha vida estava cheia de regras que eu seguia para tentar ser aceita por Deus. Sentia-me sempre indigna, e tudo o que eu fazia não parecia ser bom o bastante para me aproximar de Jesus – como se para Deus o fazer fosse mais importante que o ser.
Em nossa pequena igreja, a Lei de Deus era tão exaltada e a salvação tão essencialmente ligada à mudança comportamental que acabei por desconhecer a graça e a misericórdia de Deus. Cada sermão que ouvia me lançava no pó e me fazia sentir além do alcance da salvação. Havia irmãos que duvidavam da minha conversão pelo fato de eu ainda usar calças jeans para ir à escola – na concepção deles, isso estava totalmente em desacordo com os princípios bíblicos. Por isso mesmo não me achava em condições de ser batizada.
Não tinha vergonha de dizer aos meus colegas de classe no que eu cria e o quanto amava Jesus. Sempre que tinha oportunidade, eu pregava até mesmo para os professores. Já não mais andava com a turma da bagunça e procurei me associar com os alunos mais reservados. Todos sabiam que eu era cristã. Mas tinha medo de parecer ridícula e ser excluída do grupo, caso usasse saia comprida (naquele tempo, esse tipo de vestuário não estava na moda e apenas os evangélicos tidos como fanáticos o usavam). Talvez eu não estivesse madura o suficiente para enfrentar essa situação e viver do jeito que eu quisesse.
Enquanto isso, ao chegar à igreja, um irmão me questionava: “Será que você não está com vontade de colocar um brinquinho? Você já entregou todo o coração a Jesus?”, e outras perguntas semelhantes. “O irmão Carlinhos merecia uma namorada mais consagrada”, dizia outro. Hoje compreendo que foram comentários até certo ponto inocentes, feitos por pessoas simples, incapazes de compreender minha formação e meus sentimentos. Eram pessoas rudes, produto de seu meio, que ainda precisavam conhecer na prática a bondade e a mansidão de Jesus. Só que, naquele momento, aqueles comentários impróprios apenas aumentavam minha frustração. Eu me convencia cada vez mais de que a salvação era impossível para mim. O fardo que carregava estava me esmagando aos poucos.
Num sábado à tarde, meu pai e eu fomos com o Carlinhos e o irmão Edaí a um encontro de capacitação na Igreja Central de Florianópolis. Era a primeira vez que eu conhecia outra igreja adventista. Já havia sido “prevenida” quanto ao estado “morno e laodiceano” das igrejas em geral, principalmente as grandes. E isso fez com que esse primeiro contato fosse realmente chocante para mim.
Muitos questionamentos me vieram à mente quando vi que algumas cantoras do conjunto musical estavam vestidas e maquiadas de modo semelhante à maneira como eu me arrumava para ir aos bailes. Como era possível viver a vida pura e simples proposta por Jesus e conviver com o luxo e a vaidade? Como podia dizer “não sou mais eu quem vive, Cristo vive em mim”, e mesmo assim continuar satisfazendo os caprichos do meu eu, gastando dinheiro com roupas caras e adornos inúteis? Como poderia estar pronta para encontrar Jesus a qualquer momento, se vivia mais preocupada com as coisas deste mundo?
Senti-me muito mal naquele local porque meu ponto fraco havia sido atingido. Comecei a me sentir feia e desarrumada. Era muito conveniente que eu também pudesse me vestir daquela maneira. Talvez alguns de meus conflitos pessoais acabassem, mas eu sabia que não encontraria a paz que buscava tão ansiosamente. Como era difícil encontrar o ponto de equilíbrio...
O que eu queria era que Jesus transformasse meu coração e me ajudasse a não buscar uma religião de conveniências que se amoldasse aos meus gostos. O grande problema é que, nessa luta, acabei me tornando legalista e preconceituosa. Passei a julgar os outros pela aparência, da mesma forma como eu mesma havia sido alvo de julgamentos em minha pequena congregação. Estava devolvendo o preconceito de que tinha sido alvo.
Eu tinha muito ainda a aprender sobre o caráter de Deus e o que significa, de fato, ser “crucificada com Cristo”. Mas, naquele momento, o preconceito realmente me cegava. O padrão de santidade que me havia sido apresentado acabou se transformando numa régua para medir os outros. Aquilo não era o verdadeiro cristianismo, o verdadeiro adventismo, como eu iria descobrir mais tarde.
Havia me tornado uma espécie de fariseu, infeliz por não conseguir cumprir todas as regras que me haviam imposto. Mas foi em uma sexta-feira que tudo piorou – e muito. Chovia e fazia muito frio naquela noite de julho. O Carlinhos chegou à minha casa logo após o pôr do sol. Ele era um exemplo de cristão para mim, mas estava prestes a fazer desmoronar de vez meu frágil castelo de fé. Sem delongas, ele abriu o coração:
– Débora, você sabe por que eu não sou completamente apaixonado por você?
Sempre fui insegura. Não sei por que, mas sempre duvidei do amor das pessoas por mim. Por isso acabava estragando meus relacionamentos – ou era excessivamente ciumenta ou me tornava possessiva e agressiva. Tinha necessidade de que me demonstrassem amor para me sentir segura. Fazia algum tempo que eu reclamava da frieza do meu namorado, mas nunca me havia passado pela cabeça o motivo real.
– É que eu sou apaixonado por outra pessoa já faz muito tempo – ele completou.
Não sabia se ria ou se chorava. Acho que comecei a rir, de tão nervosa que fiquei. Mas quem poderia ser essa pessoa? Não havia ninguém no nosso círculo de amizades que pudesse... Ou será que era a Rafaela e eu nem havia percebido? Perguntei sobre todas as pessoas possíveis, mas ele não quis me dizer de jeito nenhum.
Não o deixaria ir embora assim. Eu tinha o direito de saber. Então, ele não resistiu aos meus apelos e confessou. Seu semblante se transformou. Os olhos se encheram de lágrimas e as mãos tremiam. Aquele sentimento esteve escondido por tanto tempo e ele realmente não queria senti-lo.
– Eu... eu gosto do Paulo.
Naquele momento, tentando superar a estupefação, entendi que minha missão era ajudá-lo a vencer esse sentimento. Achava que era por isso que Deus me havia colocado na vida dele. Senti compaixão, pois percebi que o sofrimento dele era verdadeiro. Queria tanto poder fazer algo por ele, e me iludi achando que seria forte e que juntos superaríamos essa situação. Eu tinha esperança porque, a despeito da luta contra essa tendência homossexual, o Carlinhos era um jovem dedicado a Jesus e sempre procurava dar o melhor a Deus. Era um grande instrumento nas mãos divinas e não poderia deixar que uma ilusão estragasse tudo e destruísse o que ele era.
Mas meu ciúme e insegurança entraram em ação e o término do namoro foi uma questão de semanas. Ninguém suportaria o comportamento que passei a ter. Aquele “momento iluminado” passou e brotaram em mim sentimentos muito ruins, como raiva, orgulho ferido e revolta. As pessoas não entendiam nada, mas achavam que eu era má e estava fazendo o Carlinhos sofrer. E eu não podia explicar nada para ninguém, pois o assunto era confidencial.
Agora, sim, eu estava me sentindo completamente só. Quando o culto terminava, meu pai ficava conversando com os irmãos e eu ia embora, caminhando sozinha. Um dia, ao passar em frente à casa do Carlinhos, seu sobrinho pequeno perguntou: “Titia, por que você não vem mais aqui?” Não consegui responder. Apenas chorei.
Minha mãe e a Teca não se conformavam com a vida que eu estava levando. Só saía de casa para ir à escola e à igreja, e nunca era vista sorrindo ou brincando.
– Minha filha, você é tão jovem, tão bonita, e está jogando sua juventude fora. Por que, filha? – era o que minha mãe vivia me perguntando.
A Teca me conhecia muito bem e sabia que eu estava escondendo algo. Até que não aguentei mais e contei a ela tudo o que havia acontecido. Ela me abraçou tentando cuidar de mim como uma mãe consola a filha. Em seu olhar brilhou a esperança de que nossa amizade voltasse a ser como antes e de que eu esquecesse toda essa história de igreja.
– Tati, por favor, me escute. Deus não quer que você fique sofrendo assim. Ele não vai deixar de salvar você simplesmente porque você quer se divertir. Deus não fez a gente para sofrer. Ele quer ver você feliz. Volte a sair comigo. Vamos! Vai lhe fazer bem. Vamos?
Como eu queria que aquelas palavras fossem verdadeiras. De certa forma, eram. Mas a felicidade de Jesus é diferente daquela que ela achava que poderia me dar. No entanto, eu sabia que a intenção dela era boa. Eu é que tinha que ter mostrado a ela o que é ser feliz com Jesus. Mas onde estava minha amizade com Cristo? Eu apenas tentava obedecer regras e mandamentos a fim de me salvar.
Desejei não ter conhecido a verdade. Queria apagar da mente tudo o que eu sabia e voltar a ter paz. Paz? Algum dia eu tive? Pensava que nunca mais a teria. Nunca mais.
Os convites da Teca eram tantos e tão insistentes! Ela era minha única fonte de amor e aconchego. Por isso, não resisti e acabei cedendo. Arrumei-me. Senti-me bonita novamente, depois de me sentir tão desvalorizada. Ao mesmo tempo em que era bom me olhar assim no espelho, no fundo dos meus olhos havia medo e tristeza.
Ninguém mais acreditava em mim. Nem eu mesma. Como poderiam? Eu dancei. Eu bebi. Eu “fiquei”. Sorri e me alegrei até altas horas da madrugada.
No dia seguinte, chorei amargamente. Lembrei-me de quando era pequena e deitava a cabeça no colo da minha mãe. A barriga dela tinha cheiro de sabão e seus dedos – com cheirinho de cebola – acariciavam meus cabelos. Era tão gostoso o colinho dela... Debrucei-me em algum lugar e fiz de conta que era o colo de Jesus. Fiquei imaginando Seu cheirinho. Seu toque. E chorei. Chorei muito. A Teca pensava que sabia por que eu estava chorando. Mas ela não sabia, porque nunca havia vislumbrado a eternidade e a perdido.
Naquele momento, eu não imaginava o quanto Jesus me amava. Ele sempre me quis de volta, e nunca deixou de acreditar em mim. Ele continuou fazendo tudo para me salvar.
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