A sensação de ser dono da própria vida era ao mesmo tempo empolgante e assustadora. Morar longe da família foi uma experiência que ajudou no meu amadurecimento, mas não foi fácil – especialmente nos primeiros meses – suportar a saudade. Eu não tinha condições financeiras de tomar ônibus toda semana para viajar os quase 200 km que separam Criciúma de Florianópolis. Assim, me vi obrigado a pedir carona na rodovia e contar com a bondade de algum motorista solidário. Na sexta-feira, levava minhas roupas sujas na mochila e no domingo as trazia de volta, limpas, junto com uma sacola cheia de alimentos que minha mãe bondosamente preparava. Aliás, se não fossem essas sacolas eu quase teria passado fome em várias ocasiões, pois os poucos recursos financeiros que recebia do meu pai davam apenas para pagar o aluguel e comprar alguns livros.
O pior momento nesses fins de semana com a família era quando eu tinha que deixar a casa dos meus pais para ir à rodoviária tomar o ônibus que me deixava no trevo de acesso a Criciúma, na BR 101, para novamente pedir carona. Enquanto descia a rua, a distância podia ver meus pais e irmãs na janela, acenando para mim. Tinha que fazer força para segurar as lágrimas. Pensava no coração apertado da minha mãe, imaginando quem iria parar o carro ou caminhão para me levar a Florianópolis; se a comida iria ser suficiente para a semana; se o filho estaria bem. Sempre tentava confortá-la, dizendo que tudo estava sob controle, que era fácil pegar carona e que Deus cuidava de mim. E era verdade. Muitas vezes o Pai do Céu demonstrou de maneira incontestável que estava ao meu lado, tomando conta de tudo. Não era fácil suportar tantas privações, mas não creio que gostaria que as coisas tivessem sido diferentes. Contar com Deus um dia após o outro foi uma experiência que pude levar por toda a vida.
Uma brisa quente e úmida, típica dos verões florianopolitanos, soprava suavemente naquele 16 de março de 1994. Um dia perfeito. E eu nem sonhava que naquele dia minha vida iria sofrer outra guinada. Meu amigo Cláudio (um goiano que dividia comigo um dos quartos da pensão onde morávamos) e eu conversávamos enquanto fazíamos algumas arrumações na mobília, que se resumia a um beliche, um pequeno guarda-roupa e uma escrivaninha com cadeira de madeira. Fazia dois anos que eu havia me mudado para a Capital. De início, morei numa “república” com dois outros estudantes, um de Criciúma, como eu, e outro de Lages. Eles eram boas pessoas, mas nossos hábitos eram muito diferentes. Toda sexta-feira eu continuava indo para Criciúma, para matar a saudade da família e “fugir” das festas regadas a cerveja e música que meus colegas costumavam fazer. Aquilo não era mais ambiente para mim. E quando conheci outros estudantes adventistas na Igreja Central de Florianópolis que estavam querendo morar juntos e soube que havia vagas numa pensão próxima ao campus, candidatei-me na hora.
– Há quanto tempo você está namorando, Cláudio? – perguntei ao meu amigo de quarto, enquanto terminávamos de arrumar as coisas.
– Há dois meses, mais ou menos.
– Sabe, eu invejo você... Desde que terminei com minha namorada, há mais de um ano, tenho pedido a Deus que me mostre uma garota que realmente tenha interesse em assuntos espirituais.
– E por que vocês terminaram?
– Ela é uma boa moça, mas depois que comecei a estudar a Bíblia e compreender o que Deus quer de mim, nossos rumos começaram a divergir. Eu já não mais frequentava os lugares em que ela gostava de estar e ela não tinha interesse na mensagem adventista. O término do namoro foi uma questão de tempo.
– Mas não é fácil você arranjar uma namorada cristã por aqui. Você viaja todos os fins de semana para casa. Mesmo que haja alguma moça da igreja interessada, você não dá chance.
– Eu sei... Mas é que tenho compromissos na igreja de Criciúma. Estou dando vários estudos bíblicos e minha mãe e irmã se converteram há pouco tempo. Preciso dar apoio a elas.
– Considero importante tudo o que você faz pela igreja, mas penso que Deus também Se preocupa com a nossa felicidade. Além disso, não vejo no que uma namorada iria atrapalhar.
– Não que vá atrapalhar. Na verdade, o fato é que até agora não apareceu ninguém... O que me resta fazer é orar para que Deus me conduza à pessoa certa.
– Confie em Deus, Michelson. Com certeza, Ele tem alguém sob medida para você.
Eu realmente acreditava nas palavras do meu amigo goiano. Mesmo assim, era bom ouvi-lo dizer isso. Desde que aceitei Jesus como meu Salvador e Senhor, tenho visto inúmeras evidências de Seu cuidado por mim. Portanto, tudo o que me restava fazer era exercitar a paciência e confiar em meu Mestre.
*****
Eu havia acabado de chegar das aulas. Estava cansado e na manhã seguinte teria que entregar um trabalho importante na faculdade. Pensei em não ir ao culto naquela noite para dar conta da tarefa, mas meus amigos (e como é bom ter amigos assim!) me convenceram a “buscar em primeiro lugar o reino de Deus” porque, fazendo isso, Ele me capacitaria para as demais atividades. Concordei com eles e esperei minha vez de usar um dos dois banheiros da pensão para tomar banho. Minha barba estava um pouco crescida e resolvi cortá-la, aproveitando para fazer uma brincadeira com meus amigos. Quando abri a porta do banheiro, foi uma risada só.
– Ah, deixa assim, Mic! Deixa como está – incentivou o Luís.
– Não sei... Eu nunca usei cavanhaque. Só deixei para ver como ficaria e para ver a reação de vocês – respondi, ainda limpando a espuma do creme de barbear no rosto.
– Se fosse você, eu ia assim mesmo para o culto – reforçou o Lauro, um jovem alto, natural de Itajaí e um dos primeiros universitários adventistas a se tornar meu amigo em Florianópolis.
O Lauro e o Luís acabaram se tornando meus melhores amigos do tempo de faculdade. Lauro cursava Engenharia de Alimentos e dividia o quarto com outro adventista de Itajaí chamado Marcelo. Os dois eram meus vizinhos de quarto. Eles eram muito interessados em assuntos relacionados com saúde e alimentação. Estavam sempre lendo e partilhando comigo conselhos da escritora adventista Ellen White. Graças a eles (e a ela), também me interessei pelo tema e acabei abandonando a dieta cárnea. Foi uma decisão difícil porque, com os poucos recursos financeiros de que eu dispunha, não podia escolher muito o que comer. Mas Deus mais uma vez veio em meu auxílio e tudo se resolveu. Nunca me arrependi de optar pelo vegetarianismo. Na verdade, minha saúde melhorou bastante depois dessa mudança. Quanto ao Luís, ele cursava Administração e morava num dos alojamentos dos fundos da pensão. Nós formávamos uma verdadeira família de amigos.
*****
O sol estava se pondo. Seus raios avermelhados já se mostravam por sobre o Morro da Cruz. A hora de ir ao culto de oração estava chegando e não sei por que acabei deixando o cavanhaque, conforme haviam insistido meus amigos. “Pra que ter vergonha?”, pensei. “Não conheço quase ninguém da Igreja Central mesmo.” Mal sabia o quanto me arrependeria dessa decisão...
Cheguei alguns minutos atrasado ao culto, pois tive que passar antes na casa de um rapaz que havia contratado meus serviços como desenhista (eram esses “bicos” que me ajudavam com as despesas e complementavam a ajuda financeira da família). O hino inicial já havia sido cantado. Corri os olhos pela igreja para ver se encontrava meus amigos a fim de me sentar com eles. Não os vi. Entretanto, meu olhar se fixou numa garota de cabelos loiros cacheados. Vi-a apenas pelas costas, ao lado da Rafaela [nome alterado], uma amiga do município de Palhoça, que de vez em quando assistia aos cultos na Igreja Central de Florianópolis. Sentei-me no banco imediatamente atrás das duas.
Os cabelos da garota desconhecida, soltos por cima do banco, deviam chegar à sua cintura. Eram realmente lindos. Senti uma vontade imensa de ver o rosto dele e, ao erguer disfarçadamente um pouco os olhos por sobre seus ombros, percebi que ela vestia calça jeans. Como não é comum as mulheres adventistas irem à igreja de calça e como nunca havia visto aquela jovem por ali, imaginei que ela não fosse adventista. Chamei a Rafaela e pedi que ela entregasse um folheto com uma mensagem bíblica à moça loira – eu sempre levava folhetos em minha Bíblia para distribuí-los no caminho até a igreja. Ao receber o impresso, a garota se virou lentamente para me agradecer. Fiquei como que hipnotizado por aqueles olhos castanho esverdeados. Meu coração acelerou. Ela sorriu em agradecimento e acho que fiquei com o rosto corado. Correspondi-lhe o sorriso, meio sem jeito, condenando-me por, logo naquele dia – naquele único e inesquecível dia – estar usando o tal do cavanhaque que eu nunca havia usado.
Pedi perdão a Deus, pois daquele momento em diante não consegui mais prestar atenção à mensagem que estava sendo pregada do púlpito (na verdade, nem me lembro quem era o orador). Aquele rosto pequeno e delicado e o olhar meigo não me saíam da mente. Qual seria o nome dela? Quem seria ela? Onde morava? Por nada neste mundo eu poderia perder a chance de conversar com ela no fim da reunião. Era estranho, mas eu sentia como se isso fosse inevitável. Como se nossos passos estivessem sendo guiados por algo – ou Alguém.
Na calçada em frente à igreja, a Rafaela veio falar comigo e me apresentou à jovem. Débora era seu nome. Débora Tatiane Martins. Cumprimentamo-nos e ela me agradeceu o folheto, dizendo que havia sido adventista. Sua voz era doce e suave. E o sotaque típico dos descendentes de açorianos (com o “r” carregado e o “s” com som de “x”) lhe conferiam um charme irresistível.
– Já está na hora de voltar para a igreja, não acha? – perguntei-lhe.
– Ocorreram alguns problemas, mas eu ainda quero voltar.
Enquanto conversávamos, nossos olhos permaneciam fixos um no outro. Esqueci-me dos que nos rodeavam. O próprio tempo parecia ter parado. Nada mais importava a não ser a linda jovem diante de mim.
Era como um sonho. Tínhamos muita coisa em comum. Logo descobri que, além de apreciar bons livros, ela também gostava de desenhar, como eu. Era muita coincidência! O tempo passou. As luzes externas da igreja foram apagadas. Os irmãos foram todos embora. Mas nossos olhos permaneciam unidos por uma força irresistível. Foi a Rafaela quem quebrou o “transe”, lembrando à Débora que já estava tarde e que elas perderiam o ônibus, caso demorassem um pouco mais. Pensei que se não fosse aquela interrupção ficaríamos ali por horas, esquecidos de tudo o mais.
Igreja Adventista Central de Florianópolis |
Resolvi tomar o ônibus expresso para o bairro universitário um pouco mais longe do ponto habitual, o que me permitiria acompanhá-las até próximo ao local em que tomariam o ônibus para o município de Palhoça, onde moravam. Dessa forma, eu passaria mais alguns minutos junto àquela garota que, sem dúvida, havia tocado meus sentimentos. Tentei conversar com a Rafaela também, mas minha atenção estava inevitavelmente sobre a Débora. Acho que acabei sendo até deselegante com minha amiga.
Poucos minutos depois, chegou o momento que eu havia tentado adiar e desejava nunca tivesse chegado: a despedida. O ônibus que eu devia tomar já estava partindo. Despedimo-nos e embarquei nele. Enquanto o veículo ganhava velocidade, continuei observando a moça pela janela, com uma dúvida a me martelar a cabeça: Quando nos veríamos novamente? Todavia, uma certeza tomou conta de mim. Era como se o próprio Deus estivesse a me dizer: “Eis aí a resposta a suas orações.”
Consolei-me com esse pensamento nas angustiantes semanas que se seguiram.
1 comentário:
estou esperando ansiosamente pelo décimo capítulo....
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