quarta-feira, setembro 06, 2006

Capítulo 10 - Luta interior

Débora Borges

Acordei assustada e encharcada de suor. Parecia ter sido tão real aquele sonho com a volta de Jesus – como se o tempo realmente houvesse voltado para que eu tivesse uma segunda chance. Fazia alguns meses que eu havia me afastado da igreja e quanto mais o tempo passava, mais eu me distanciava dos princípios que antes me eram tão caros e cedia espaço para o pecado em meu coração.

O sonho com a praia da Pinheira havia sido mais um chamado de Deus para que eu voltasse para a proteção de Seus braços e parasse de me machucar. Quando me distanciei da igreja, o que eu mais queria era resgatar minha autoestima, mas exatamente o contrário acabava acontecendo. Tentava me parecer com as pessoas com quem agora eu convivia. Queria agradá-las. Mas isso só me trazia tristeza e me desvalorizava. Eu sabia coisas que elas ignoravam e não conseguia mais ser como elas.

Mas o tempo havia voltado para mim. Eu tinha recebido uma nova oportunidade de Deus para mudar minha história. “Como, meu Deus? Como? Não fui longe demais para voltar? Gosto de estar com minhas amigas e me divertir com elas... Além do mais, agora mesmo que ninguém vai acreditar em mim lá na igreja. Mas eu não quero viver assim longe de Ti. Sinto Tua falta. Ainda me sinto só. O que eu faço, Senhor?”

Orei desesperadamente naquela manhã, mas feliz por estar viva e ter a chance de tentar fazer algo para mudar. Levantei-me e fui até a casa do irmão Gilberto, o líder do grupo adventista no bairro. Contei-lhe sobre o sonho e depois lhe pedi que estudasse a Bíblia comigo, a fim de que Deus operasse em mim a transformação que eu tanto desejava. “Mas tem que começar bem cedo e terminar antes das três da tarde, porque a Teca vem me buscar a essa hora para irmos à praia”, foi a ressalva de um coração ainda dividido e em conflito. “Está bem”, ele respondeu, meio confuso diante da condição.

Os estudos bíblicos eram regados com lágrimas. Eu chorava por minha condição e minha desesperada necessidade de Jesus. Ele, mais do que ninguém, sabia que em meu coração era travada uma luta terrível devido ao meu apego a coisas incompatíveis com uma vida de santidade, uma vida com Cristo. Sentia-me irremediavelmente perdida. “Não vou conseguir me salvar, não vou”, eu repetia entre soluços a cada estudo.

Todos os sábados a Teca parava em frente à casa irmão Gilberto e me chamava, como combinado. Eu só gesticulava da janela, com os olhos inchados, dizendo que não iria. Isso aconteceu umas três vezes, até que ela acabou desistindo de me chamar. Assim, eu acabava ficando na casa do líder da igreja até a hora do pôr do sol. Não demorava muito e outros irmãos apareciam ali. Eu gostava muito de ouvi-los conversar sobre a Bíblia. Quando o tempo estava bom, íamos para o quintal, dávamos as mãos, formávamos um círculo próximo a uma grande árvore e cantávamos hinos, alguém lia um trecho das Escrituras e orávamos. Depois todos se abraçavam, desejando uma feliz semana. Logo em seguida, a esposa do irmão Gilberto servia seu delicioso pão integral com cevada.

Depois disso, eu ia para casa me sentindo mais leve, serena, mais perto de Deus. Mas, então, vinham as outras influências e destruíam aquela paz. Desta vez, mesmo não gostando do fato de eu estar novamente estudando a Bíblia com os adventistas, a Teca não se afastou de mim. Ela estava sofrendo muito, pois seu namoro de mais de dois anos havia acabado e ela precisava de um ombro para chorar. Para ela, a única forma de esquecer a tristeza era se divertindo com uma boa amiga. Diante disso, eu acabava cedendo aos apelos dela e a acompanhava nas saídas à noite. É claro que os convites da Teca tornavam mais difícil resistir à vontade de também me divertir, mas eu ia mesmo porque gostava de ir. Ouvir música, estar com amigos, dançar – era apenas uma forma de tentar esquecer a luta interior pela qual eu passava. Mas era tudo ilusão e eu sabia disso. Só que eu não via como sair dessa rotina viciante, da situação “confortável” de servir a dois senhores.

Um dia fiquei muito contente ao encontrar a Rafaela, quando caminhava pelas ruas da Barra.

– Oi, Rafaela! Você por aqui? Não está mais colportando?

– Oi, Tati, que bom ver você! Não, não estou mais colportando, por enquanto [colportagem é a venda de literatura religiosa e de saúde]. Preciso resolver algumas coisas... Vamos até a minha casa?

– Está bem, vamos.

Quando entramos no quarto dela, ela falou entusiasmada:

– Deixe-me contar uma coisa.

– O quê?! Você está namorando? – tentei adivinhar pelo tom de voz dela.

– Ainda não... Mas conheci um jovem muito legal, lá na Igreja Central de Florianópolis. O nome dele é Michelson. Ele faz Jornalismo na Federal e é bonito, inteligente e simpático. Mas, acima de tudo, o que eu mais gostei nele é que ele é muito cristão. Para mim, não importa tanto a beleza dele. O que me chamou a atenção mesmo foi a consagração. Quero ter um marido bem cristão.

– Puxa, que legal! – até suspirei em pensar em alguém com tantas qualidades. Essa pessoa existe? Eu também precisava encontrar alguém assim.

Depois ela me mostrou um artigo dele publicado na Revista Adventista, intitulado “Operação Cavalo de Troia”. Uma análise da coleção de livros escrita pelo jornalista espanhol J. J. Benítez, e que fazia muito sucesso nas décadas de 1980 e 1990.

– Fico feliz por você – continuei. – Gostaria de estar na mesma situação.

– É só você querer.

– Não é tão simples assim.

A Rafaela se mobilizou para me ajudar. Emprestou-me fitas cassete de músicas e me incentivou a ler a Bíblia e os livros de Ellen White, além de me convidar a ir à igreja com ela.

– No próximo sábado, um coral adventista do Chile vai cantar na Igreja Central. Talvez o Michelson não vá para a casa da família dele, em Criciúma, e fique por aqui neste fim de semana. Você gostaria de ir comigo à apresentação do coral e conhecê-lo?

– Sim, vamos. Acho que vai me fazer bem.

A igreja estava lotada. Foi difícil procurar o “tal” Michelson no meio de tantas pessoas. Localizamos seus colegas de pensão, mas ele não estava junto com eles. Subimos até a galeria, mas ele também não estava lá. Bem, não seria naquela ocasião que eu iria conhecer o estudante que havia impressionado minha amiga. Mas gostei muito de ouvir o coral, principalmente quando com toda a igreja cantaram “Aleluia”, de Haendel, no fim da apresentação. Estremeci imaginando meu encontro com Jesus e saí dali disposta a me preparar para aquele dia.

Aos poucos, minhas saídas à noite com a Teca foram diminuindo. Ela já estava até se conformando com a ideia de um dia eu retornar à igreja. A Rafaela também acabou fazendo amizade com a Teca e ela parecia respeitá-la, apesar de pensar de forma diferente em muitos aspectos.

No meu coração ainda havia muitos sentimentos ruins para serem removidos, muito mais do que na primeira vez que conheci a Cristo. Durante o ano em que permaneci longe dos princípios bíblicos, maus pensamentos e más tendências foram cultivados. Não imaginava do que as pessoas sem Deus eram capazes. Mentira, mágoa e futilidade eram coisas comuns. E isso me causou feridas que antes eu não tinha. Além disso, alimentei minha vaidade de tal maneira que agora não sabia agir de outra maneira. Era muito mais difícil mudar desta vez. Não me sentia nem mesmo digna de tentar ser aceita novamente por Deus e pela igreja. Mas Jesus espalhava “lembretes” por meus dias dizendo que me amava. Ele usava pessoas, acontecimentos, textos bíblicos e até sonhos. Isso fazia com que minha esperança nunca desaparecesse. Por menor que ela estivesse, nunca se extinguiu de todo.

Tudo parecia estar caminhando bem, apesar da constante luta interior. Sentia os fortes braços de Jesus ajudando em meu reerguimento. Até que o inimigo deu sua cartada estudada e me enganou mais uma vez.

Alguns meses antes, minhas amigas e eu havíamos ido à inauguração do Shopping Beira-Mar, na Avenida Beira-Mar Norte, em Florianópolis. Tudo era muito lindo e empolgante para mim. O ambiente era sofisticado, as pessoas bonitas, bem vestidas, aparentando cultura e educação. Estávamos caminhando lentamente, observando as vitrines, comentando as novidades, quando o gerente de uma loja famosa nos convidou para entrar. Ele conhecia uma das minhas amigas que já havia feito alguns trabalhos como modelo. Então, ela nos apresentou e ele sugeriu que preenchêssemos uma ficha para, quem sabe, trabalhar na loja como vendedoras.

Vibramos muito com a possibilidade e, na mesma semana, voltei à loja para entregar uma foto para ser anexada à minha ficha. Por algum tempo, esperei ansiosa pelo telefonema do gerente. Mas os meses foram passando e acabei esquecendo aquilo. “Talvez eu não combinasse mesmo com aquele ambiente”, pensei. Mas como eu queria ser como aquelas pessoas...

Finalmente, meu desejo acabou se cumprindo. Quando cheguei em casa, certo dia, minha mãe me deu o recado toda feliz: “Ligaram do shopping avisando para você ir lá amanhã para fazer uma entrevista.” “Sério?!”, perguntei, tentando me recuperar da surpresa. Eu precisava contar a novidade para a Teca. “Logo agora que estou tentando voltar para a igreja... Será que devo ir?”, questionei-me em pensamento, pois minha mãe nem podia sonhar com essa hesitação. “Acho que vou só conversar, para ver o que eles querem. Quem sabe eles até me liberem aos sábados. Não custa tentar”, a tentação começava a me vencer e eu tentava me iludir querendo conciliar as coisas. No fundo, eu sabia que o problema não consistia apenas na guarda do sábado. Como poderia guardar os outros mandamentos também, especialmente o primeiro? Naquele ambiente, as pessoas via de regra só amavam a ostentação e a si mesmas. Na satisfação das vaidades, Deus era um ilustre desconhecido.

Shopping Beira-Mar

Fui muito bem na entrevista. O gerente disse que havia gostado de mim, que eu tinha o perfil ideal para a loja e que tinha certeza de que eu seria uma excelente vendedora. Entretanto, meu lado religioso o preocupava. Fiquei uma hora falando sobre como havia conhecido a Jesus e sobre a volta dEle a este mundo para resgatar Seus filhos. Disse que temos que nos preparar e observar a Lei de Deus, que o sábado é um sinal entre o Criador e Seu povo, e que eu não gostaria de trabalhar nesse dia. Depois de ouvir tudo, ele me deu um ultimato: “Você é quem vai escolher o que quer para sua vida. Não responda agora. Vá para casa, pense com calma e tome sua decisão. Ou você guarda o sábado e segue essa sua religião, ou trabalha aqui e se dedica à carreira promissora de vendedora. Uma coisa ou outra. Você terá que escolher. Amanhã você me liga e diz o que decidiu, está bem?”

“Esta bem”, respondi, ainda tentando assimilar a maneira como ele expôs a situação. Era muito claro. Minha ilusão estava desfeita. Queria ter as duas coisas, mas aquele homem deixou tudo muito claro: ou escolhia Jesus ou ficava com o “mundo”. Serviria a Deus ou à vaidade? Adoraria a Cristo ou a mim mesma?

Eu devia ter buscado a Rafaela para me aconselhar, mas saí dali e fui para a casa da Teca. O que será que eu estava querendo ouvir? Meu coração estava apertado, pois eu não queria mais ficar longe de Jesus. Talvez para outra pessoa fosse fácil resistir àquele apelo, mas o inimigo conhece a fraqueza de cada ser humano e usa isso contra aqueles que não se apegam firmemente às mãos do Pai. Essa era precisamente a minha situação naquele momento. Não estava forte o bastante para resistir e a tentação era insuportável. “E se eu experimentar só por algum tempo?” Ficava alegre só de pensar como seria bom estar lá. Meu apego às vaidades e ilusões do mundo ainda era muito grande.

– Você não é nem louca de não aceitar essa proposta de emprego! Ai, Tati, me poupe! Só por causa do sábado? Faz tempo que você deixou de guardar o sábado. Não vai querer voltar com isso logo agora, né? Por favor, não perca essa oportunidade. Essa experiência vai enriquecer seu currículo. Vamos poder ter roupas bonitas, conhecer novas pessoas... Vá lá e dê um jeito de me chamarem também. Pronto! Está decidido. Vai ser muito bom! – para a Teca, o dilema se resolvia de forma simples e ela sorria e vibrava com a possibilidade de também poder trabalhar na loja.

Sorri para minha amiga, mas não disse nada. Uma parte de mim estava triste porque aos poucos eu estava me entregando à tentação, o que levaria fatalmente à decisão errada.

Quando a Rafaela foi à minha casa, naquela mesma semana, encontrou-me bem maquiada saindo para o trabalho. Não foi preciso falar nada. Seu olhar era eloquente. Ela estava decepcionada. Depois desse dia, nos encontrávamos muito raramente.

A princípio, eu estava entusiasmada com as novidades. Tinha muita vontade de aprender e disposição para ajudar a qualquer momento que fosse necessário. Queria me sentir capaz e ser bem-sucedida, correspondendo à expectativa de meus empregadores. E foi o que aconteceu. Peguei o jeito da coisa e no segundo mês fui a melhor vendedora da loja.

Mesmo com o sucesso, com o tempo acabei me sentindo oprimida. Havia muita rivalidade e inveja entre as pessoas. O materialismo e a vaidade eram a maior motivação para a vida e comecei a ver quão fúteis eram essas coisas. Não me sentia mais à vontade naquele ambiente e percebi que ali não era mesmo o meu lugar. Mas estava confusa sobre o que fazer e insegura quanto ao meu futuro. Sentia que não merecia, mas ainda esperava que Deus fizesse um milagre em minha vida, mudando meu coração. Tinha vergonha só de pensar em voltar para a igreja. Eu não precisava passar por isso mais uma vez para saber que tudo era ilusão.

*****

Parecia mais um dia qualquer, até que a Rafaela me fez uma surpresa e apareceu lá na loja, no fim do expediente.

– Rafaela?! Está passeando? Vamos lanchar juntas? Já está na hora de eu sair e estou com uma fome...

– Vamos, sim. Como vão as coisas aqui? – perguntou-me, enquanto caminhávamos para a praça de alimentação.

– Tudo bem. Sabia que um dia desses um cara que contrata modelos para uma agência superfamosa esteve aqui na loja? Ele disse que eu deveria fazer um book e me convidou para participar de um teste para um comercial de TV.

– É? E você vai fazer o teste?

– Acho que não... Tenho vergonha. Muitas moças bonitas vão participar. Tenho medo de ficar pra trás, sendo tão franzina. – sentamo-nos, pedi um milkshake de morango e mudei de assunto.

– Mas e você, Rafaela? Já está namorando aquele rapaz, o Michelson?

– Ainda não. Faz tempo que não o vejo, pois ele estava de férias da faculdade e ficou lá em Criciúma. Mas acho que hoje ele vai à igreja porque as aulas já recomeçaram. É por isso que vim aqui. Quer ir à igreja comigo nesta noite?

– Ah, não sei... Tenho aula e não posso faltar mais. Acho que vai ter que ficar para outro dia.

– Que pena. Pensei que finalmente você iria conhecê-lo.

– Estou curiosa, mas hoje não vai dar. Obrigado por me convidar. A gente se vê por aí.

Mais tarde, quando estava caminhando para a sala de aula no Instituto Estadual de Educação, onde estudava na época, encontrei alguns colegas de classe vindo em direção contrária.

– Ei, Débora, não vai ter aula hoje. Pode voltar.

– É verdade? Por que não?

– Os dois primeiros professores faltaram e só haveria a última aula, mas ninguém quis esperar.

– Sério?! – quase pulei de alegria.

Saí correndo e fui procurar a Rafaela. Ela estava sentada na escadaria em frente à Catedral de Florianópolis, na Praça XV. Como ainda faltava mais de uma hora para o culto começar na Igreja Adventista Central, ficamos conversando ali até o sol se pôr. Chegamos cedo à igreja e nos sentamos nos primeiros bancos, do lado esquerdo. De vez em quando, a Rafaela olhava para trás, para tentar localizar o Michelson. Mas o culto começou e nada de ele chegar.

De repente, sentimos que alguém havia se sentado no banco atrás do nosso. Era ele. Eu estava ansiosa para ver o rosto dele, mas tinha que ser discreta. Foi quando ele passou um folheto para a Rafaela e pediu que ela me entregasse. Era a minha chance. Virei-me para agradecer e sorri para ele. A Rafaela deixou passar um tempinho e depois cochichou:

– O que você achou?

– Você não tinha me falado que ele usava barba...

– E não usava. Não sei o que aconteceu.

Achei o sorriso dele lindo e seus olhos muito expressivos. Tive uma estranha vontade de conhecê-lo melhor, mas obviamente me contive e tentei não demonstrar meu interesse. Sabia que não era correto sentir aquilo, mas não podia evitar.

Quando o culto acabou, fomos conversar com ele e com seus amigos. O Michelson parecia muito interessado em saber quem eu era. A maneira como ele me tratou me fez sentir querida e especial. Quase sem perceber, empolguei-me dialogando com ele. Tínhamos algumas coisas em comum e quanto mais falávamos, mais assuntos surgiam. Eu não queria que a conversa acabasse. Estava me sentindo feliz como uma criança por estar perto dele. Foi tudo tão espontâneo e não proposital que eu não sei se consegui disfarçar. Meus sentimentos me pegaram de surpresa e só depois de algum tempo pude avaliar o que estava acontecendo.

Quando me dei conta, nós dois estávamos isolados do grupo. Fiquei muito “sem graça” e ao caminharmos todos juntos – os companheiros de pensão do Michelson, ele e nós duas – para o ponto de ônibus, tentei me entrosar com os outros e, principalmente, deixá-lo a sós com a Rafaela. Porém, parecia que ele estava sentindo o mesmo por mim e acabava ignorando por completo minha amiga. Eu não sabia como agir. Não queria desprezá-lo de maneira alguma, mas comecei a sentir um frio na barriga só de pensar que minha amiga pudesse perceber o que parecia estar havendo entre mim e ele. A preocupação me dominou.

Antes de entrar no ônibus, o Michelson reforçou o convite que nos havia feito para que o assistíssemos pregar dali a um mês. Uma leve angústia se abateu sobre mim ao pensar que eu não poderia vê-lo novamente. Eu simplesmente respondi “até mais”, sem dar certeza de que iria, pois sabia que não seria correto de minha parte aproximar-me dele dali para a frente.

– Você gostou dele, não é? – a Rafaela não conseguiu disfarçar uma ponta de sarcasmo na voz. E eu não podia condená-la.

– Achei-o muito legal, mas não se preocupe; não gosto de homens de barba – tentei disfarçar.

– Ainda bem que ele estava de barba hoje – ela encerrou o assunto.

Entramos caladas no ônibus que ia para a Barra e assim permanecemos a viagem toda. As duas, lado a lado, por quase uma hora olhando para o céu através das janelas do veículo, pensando na mesma pessoa, mas com tormentos diferentes.

Como pude me apaixonar assim, de forma tão imprudente? Por que logo pela pessoa de quem minha amiga gostava? Por que não poderia tê-lo conhecido em outras circunstâncias? Sentia que eu não era a pessoa ideal para ele. Certamente eu não merecia um homem tão bom e tão cristão – a Rafaela é que merecia. Mas percebi que ele nutria apenas amizade por ela e talvez nem desconfiasse dos sentimentos dela por ele. Mas e se a amizade crescesse e ele descobrisse um dia a pessoa maravilhosa que minha amiga era? Se eu estivesse por perto, iria estragar tudo... Decidi, com muito pesar, que iria me afastar. Iria esquecê-lo e nunca mais voltaria àquela igreja, pelo menos nos cultos de quarta-feira, os quais o Michelson costumava assistir.

Desembarquei do ônibus próximo à casa da Teca. Precisava desabafar com alguém.

– Ai, Teca... Conheci o amor da minha vida hoje!

– Que exagero! – ela sorriu. – Onde? Lá no shopping ou na escola?

– Na igreja.

– Na igreja? – ela engoliu o sorriso e fechou o rosto. – Como assim?

Quando expliquei o que havia acontecido, ela ficou horrorizada. Em parte porque não queria que eu namorasse um adventista, o que possivelmente facilitaria meu regresso à igreja; mas, principalmente, porque a Rafaela gostava dele. Isso nunca tinha me acontecido antes. A Teca e eu sempre fomos fiéis uma à outra e nunca nos interessamos por paquera uma da outra.

– Juro que eu não queria sentir isso, Teca. Mas parece que a vida ganhou novo sentido porque ele existe. Queria ficar perto dele o tempo todo!

– Mas não pode! Isso não dá. Você tem que esquecê-lo.

Fui dormir triste naquela noite (pra variar). Queria falar com Jesus sobre o Michelson, mas me sentia envergonhada. Mesmo assim, acabei abrindo o coração:

– Senhor, só Tu podes sentir e compreender o que sinto de verdade. Eu queria tanto estar em outra situação e sei que a culpa de estar assim é só minha. Queria tanto ter aquele jovem como namorado. Ele me fez sentir coisas tão boas. Me senti feliz como nunca antes ao estar perto dele. Queria ser uma pessoa melhor para merecê-lo, mas não sou. Parece até um castigo imaginar o quanto poderia ser feliz e depois perder a chance para sempre... Senhor, não quero atrapalhar as coisas entre a Rafaela e ele. Mas se, por acaso, não der certo entre os dois, e se for da Tua vontade, guarde-o para mim, por favor. Que um dia, mais tarde, quando eu for uma pessoa melhor, possamos nos encontrar novamente e, quem sabe, eu ainda tenha uma chance. Amém.

Apaguei a luz e chorei baixinho até dormir.

Quando acordei, tudo parecia ter sido outro sonho. “Será que ele só me tratou tão bem apenas para eu voltar para a igreja? Pode ser. Talvez eu nem seja especial para ele... Melhor esquecer. Além do mais, é possível que ele ainda vá gostar da Rafaela, e ela merece ser feliz.”

Eu não soube me aquietar e esperar pelo Senhor; agora estava sofrendo as consequências. Quando conheci a pessoa ideal para mim, eu havia me tornando a pessoa errada. Tudo porque não confiei em Jesus e tive pressa de viver.

Os dias seguintes foram tediosos e eu seguia minha rotina. Então, numa noite de domingo, quando a Teca e eu voltávamos de nossa choperia e pizzaria preferida, nossa vida mudou completamente, para sempre.

Eu já estava em casa, me preparando para dormir, pois iria levantar cedo para trabalhar no dia seguinte. Estranhei quando ouvi a Teca batendo à porta e me chamando. Eu havia acabado de deixá-la em sua casa. Minha preocupação aumentou quando percebi que ela estava chorando.

– O que foi, Teca? O que aconteceu?

Ela não respondeu. Só me abraçou e ficou chorando compulsivamente. Esperei uns minutos e perguntei novamente:

– Me conte, alguém morreu?

Ela fez que não com a cabeça, mas ainda não conseguia falar. Depois de algum tempo, gaguejou:

– A mãe... A mãe...

– O quê? Sofreu um acidente? Me fala! Estou ficando angustiada.

– Eu não consigo – ela disse, entre soluços.

– Vamos até a cozinha tomar água. Acalme-se e agora tente falar.

– A mãe e o pai foram passear de canoa, hoje, com um casal amigo deles – ela prosseguiu, depois de beber metade da água no copo. – Eles guardaram a canoa no rancho e quando estavam indo para casa, passaram em frente ao cemitério. A mãe... A mãe mudou de voz e quis entrar no cemitério. O pai e o amigo dele não conseguiram segurá-la. Depois, ela desmaiou e em alguns instantes voltou ao normal.

A Teca bebeu o restante da água e continuou:

– Agora ela não se lembra de nada, Tati. A mulher do amigo do meu pai é espírita e quer levar a mãe a um centro. Deus não pode permitir isso. Eu sei que foi o inimigo que se apossou dela. Eu acredito na Bíblia, Tati.

Aquilo realmente me surpreendeu, mas tinha mais:

– Eu sei que os mortos estão dormindo na sepultura e não podem se comunicar com os vivos, eu sei disso. Por favor, Tati, vamos orar pela minha mãe. Ore por mim também, por favor. Eu prometo que se Jesus libertar minha mãe, eu vou dar minha vida para Ele. E vou para a sua igreja, Tati.

Fiquei atônita e não sabia o que dizer. Era difícil acreditar no que estava ouvindo: minha amiga confessando que acreditava no que eu havia pregado para ela. Nunca pensei que fosse ouvi-la me pedindo para orar com ela. E também nunca pensei que uma coisa horrível dessas pudesse acontecer com a mãe dela. E agora? Como poderia interceder por elas se eu estava tão longe de Deus? Não me sentia digna de ajudar. Mesmo assim, sabia que Jesus nos ama. E se eu, que sou pecadora, me compadecia da minha pobre amiga, Jesus não Se compadeceria?

Fomos até o meu quarto e nos ajoelhamos. Naquela noite, pedi o perdão de Deus como nunca antes havia feito. Eu queria pegar a Teca no colo – como as mães que pediram a Jesus que abençoasse seus filhos – e entregá-la nos braços do Salvador. E Ele não nos rejeitou. Ele nunca rejeita qualquer pessoa! Senti Seu perdão me envolvendo. Me abraçando. Pude perceber quanta misericórdia Jesus tem de nós e senti o desejo que Ele tem de nos salvar.

– Teca, escute bem o que vou lhe dizer: Jesus é o Deus Todo-Poderoso, Criador dos céus e da Terra. Nada acontece sem que Ele permita. Se Ele não quiser, o inimigo não vai chegar nem perto da sua mãe. Confie nEle. Ele vai proteger vocês.

– Mas eu não quero dormir mais lá em casa. Você me deixa dormir aqui?

– É claro. Mas não precisa ter medo. Confie em Jesus, por favor.

– Mas e se acontecer...

– Deus está no controle. Confie em Jesus. Ele estará do seu lado.

– Eu quero ficar aqui e quero que você estude a Bíblia comigo toda noite.

– Está bem. Vamos estudar a Bíblia e você pode dormir aqui até se sentir segura.

Eu estava triste por vê-la sofrer tanto, embora na época não tivesse clara noção do terror pelo qual ela estava passando. Por outro lado, apesar de tudo, eu estava feliz porque tinha certeza de que aquilo iria passar e que tudo acabaria bem. Pela primeira vez, depois de muito tempo, pude olhar para o futuro e ter esperança.

Toda noite nós estudávamos a Bíblia, e toda madrugada acordávamos para orar. Eu não suportava ver o semblante abatido e assustado da minha amiga. Preocupava-me muito com ela e por isso passei a orar mais ainda. Pedia que ela se apaixonasse por Jesus e encontrasse a alegria de viver ao lado dEle. No começo, foi uma luta terrível, mas em pouco tempo ela voltou a se alegrar e aprendeu a amar Jesus.

Entendi que não podia mais continuar trabalhando no shopping. Cheguei à loja naquela semana e anuncie que iria trabalhar apenas até completar o mês. Naquele sábado, recebi um sinal de Deus, confirmando minha decisão e me provando a santidade do sétimo dia da semana.

O sábado sempre havia sido o dia mais movimentado e todos vendiam mais nesse dia. Estranhamente, naquele sábado não consegui vender uma peça sequer. No meio da tarde, o gerente me chamou para conversar.

– Débora, o que está acontecendo? Eu vi você atender várias pessoas e por que não fez uma venda até agora? Você sempre foi uma ótima vendedora. Desistiu de vender?

– Eu não sei o que está havendo. Estou agindo da mesma forma de sempre... Fique por perto e observe.

Ele ficou por alguns minutos analisando meu atendimento aos clientes. Mas também não encontrou explicação para o “fenômeno”.

– Isso é incrível! – ele me disse. – As pessoas provam, gostam, desejam, mas na hora de fechar a venda, desistem... Se fosse um ou outro cliente, tudo bem. Mas todos!

– Isso está acontecendo o dia todo. Mas já sei o porquê.

– Por quê?

– Porque hoje é sábado! Deus está me mostrando que não devemos trabalhar no dia que Ele reservou para Si. O sétimo dia foi separado por Deus na Criação para que possamos estar com o Criador.

O gerente ficou sério e pensativo. Não falou mais nada, pois ele mesmo não sabia explicar o que estava acontecendo.

Quando olhei para o relógio, vi que o horário do pôr do sol havia chegado. O sábado estava acabando e chamei novamente o gerente.

– O sábado acabou – eu disse. – Agora vamos ver o que vai acontecer.

Mal acabei de falar e comecei a atender uma cliente que comprou muitas peças de roupa. E assim foi, uma pessoa após a outra. Até as 20 horas vendi o equivalente a um dia inteiro de trabalho.

– Agora você acredita? – desafiei o gerente, no fim do expediente.

– Não sei o que dizer. Só me resta acreditar...

Ele ficou realmente impressionado e comentava com os funcionários o que havia acontecido naquele sábado.

No domingo, a Teca me pediu para levá-la à igreja. “Mas não quero ir aqui na Barra e nem na Palhoça. Quero ir à Igreja Central de Florianópolis. Não quero que algum conhecido me veja na igreja, por enquanto. Pode ser?” “É claro que pode”, respondi, não me contendo de felicidade. Era a primeira vez que a minha amiga me acompanharia a um culto na igreja adventista. Parecia um sonho!

De repente, senti um forte desejo de encontrar o Michelson e poder lhe contar a novidade. Tinha certeza de que ele ficaria feliz em saber que eu estava voltando para a igreja, como ele me havia convidado, em nosso primeiro encontro, naquela quarta-feira. Mas eu também sabia que ele não estaria lá na central no domingo. Se quisesse vê-lo, teria que ir novamente ao culto de quarta-feira. A vontade era grande, mas eu não podia fazer isso...

No fim daquele culto de domingo, um jovem chamado Marcelo veio nos cumprimentar e saber quem éramos.

– Ah, então você é a Débora! – ele falou sorrindo.

– Por quê? Você me conhece? – fiquei surpresa.

– Um amigo meu falou que conheceu você outro dia.

– Que amigo?

– O Michelson, lembra dele?

Meu coração disparou e devo ter ficado corada. Acho que meus lábios alcançaram as orelhas, num largo sorriso.

– Claro que lembro! E o que ele falou de mim?

– Nada... Só chegou em casa comentando que havia conhecido você.

Naquela noite, enchi-me de esperança. “Se o Michelson falou de mim, é porque gostou de mim. Se não tivesse gostado, não sairia comentando”, pensei, enquanto me deitava. Novamente pedi a Deus: “Senhor, se essa for Tua vontade, que um dia daqui a algum tempo possamos nos encontrar. Mas, Senhor, se Tu queres que ele namore a Rafaela, faze com que se apaixone por ela logo e tira esse sentimento do meu coração. Meu Deus, não quero fazer a Rafaela sofrer. Por favor, se não for Tua vontade que ela fique com o Michelson, faze com que ela o esqueça.”

Fiquei sonhando acordada com o dia em que poderia encontrá-lo novamente, até que veio o sono e adormeci com um sorriso nos lábios.

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