quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Capítulo 3 - Acidente

Michelson Borges

Tudo estava preparado para a festa de despedida do curso Técnico de Química do Centro Interescolar de Segundo Grau de Criciúma (o antigo CIS). Durante três anos, nossa turma viveu muitas situações que certamente ficarão gravadas na memória: feiras de ciências, pesquisas, gincanas culturais, aulas de laboratório e solidariedade nas aulas de reforço organizadas pelos próprios alunos para ajudar a maioria a tirar notas pelo menos acima de 5,0 nas “terríveis” avaliações de físico-química.

Turma do terceiro ano do curso de Química, 1990

As “experiências proibidas” também ficarão na lembrança. Os mais corajosos de nós se divertiam “tomando emprestadas” pequenas quantidades de sódio metálico para fazê-lo explodir em copos de plástico com água, no meio do campo de futebol da escola. Como era divertido fabricar pólvora e encher o pátio de fumaça e cheiro de enxofre! É claro que, depois, ninguém sabia quem tinha sido o responsável pelo “ato terrorista”. Havia, no entanto, sempre uma certeza: “Só pode ser coisa do pessoal de Química.”

Impressionar as turmas do primeiro ano do ensino médio com nossas experiências era outro passatempo interessante. Como éramos bastante aplicados à disciplina de laboratório, o professor nos dava amplo acesso ao depósito de reagentes químicos. Algumas vezes, produzíamos antiácidos efervescentes e bebíamos o líquido em frascos de vidro transparente, diante da janela que ficava em frente à porta da sala de aula do primeiro ano. Era engraçado ver os olhos arregalados dos alunos. No rosto deles ficava estampada a exclamação: “Que malucos!” Como gostávamos disso!

Noutras ocasiões, abríamos frascos que continham sulfeto de amônio e soprávamos o gás fedorento, também pela janela em frente à sala de aula do pessoal do primeiro ano. O cheiro de ovo podre do sulfeto tomava conta do ar e a aula, às vezes, precisava ser interrompida. Muitos perguntavam “Quem foi?”, e nós, escondidos, tínhamos que conter as risadas para não ser descobertos.

Para mim, entretanto, a atividade mais prazerosa e compensadora durante o tempo de ensino médio não foram necessariamente as aulas e experiências de laboratório. Com muito esforço, organizei uma equipe, conseguimos patrocinadores e demos início à publicação de um jornal escolar chamado Tô Sabendo.

Éramos responsáveis pelas reportagens, entrevistas, ilustrações e mesmo pela distribuição e venda nas salas de aula. Trabalhando no Tô Sabendo pude ter certeza de que queria seguir a carreira de jornalista. Além disso, o estágio que tive de fazer numa indústria química serviu para me mostrar que a monotonia de um laboratório de análises químicas não era mesmo coisa para mim. Havia escolhido o curso de Química por ser, em minha cidade, o que mais combinava com minha apreciação pela ciência. Mas escolher uma carreira para a vida toda com aquela idade era muito difícil. Graças ao Tô Sabendo, minha vida tomou outro rumo e pude me realizar como profissional, anos depois.

Centro Interescolar de Segundo Grau (CIS), em 1990
Foi também durante o tempo do ensino médio (em 1989) que conheci um jovem que se tornaria mais que um grande amigo e faria verdadeira revolução em minha vida. O Vanderlei era diferente dos demais colegas de classe. Era bastante extrovertido e de ótimo bom humor. No entanto, agia com seriedade nos momentos em que isso era exigido. Seu interesse pela Bíblia e a atenção que dispensava às pessoas logo me impressionaram. Frequentemente, ele deixava folhetos com mensagens religiosas sobre a mesa dos colegas de classe. Que ousadia interessante! Na verdade, o cristianismo dele era diferente do meu. E isso me perturbava um pouco.

Certo dia, enquanto eu discutia questões teológicas com um colega recentemente convertido às testemunhas de Jeová, o Vanderlei se aproximou e tomou posição a meu favor em alguns assuntos, como a divindade de Jesus e do Espírito Santo, por exemplo. Isso me impressionou. “Ele é ‘crente’ e mesmo assim concorda comigo?” Pouco depois, o colega testemunha de Jeová se retirou, deixando-nos a sós.

– Você gosta de ler a Bíblia? – perguntou Vanderlei, na primeira vez em que tivemos um diálogo sozinhos.

– Gosto muito – respondi. – Costumo lê-la, às vezes. E em nosso grupo de jovens a usamos muito como fonte de “iluminação”.

– Interessante. Mas você já estudou a Bíblia mais a fundo? No seu grupo de jovens vocês a estudam?

– Na verdade, não exatamente... – respondi, meio confuso com a pergunta. Ele continuou:

– O que você acha do livro do Apocalipse?

– Apocalipse... – respondi devagar quase soletrando a palavra, tentando ganhar tempo para pensar na resposta. – Acho interessante. Até já o li algumas vezes, mas muita coisa me parece incompreensível.

Eu estava falando a verdade. Na adolescência, frequentemente me reunia com colegas de classe e tentávamos interpretar o último livro da Bíblia. As bestas com chifres, as pragas, os quatro cavaleiros... Tudo isso me impressionou muito na época. Aquelas imagens estranhas, mas solenes me vieram à mente, quando o Vanderlei tornou a perguntar:

– O que você acha de fazermos um estudo sobre esse livro?

– Como é isso?

– Bem – continuou ele, – eu tenho comigo algumas apostilas. Podemos estudar juntos e...

– Eu prefiro estudar sozinho – interrompi, deixando o preconceito e o orgulho falarem mais alto.

Na verdade, minha intenção era pesquisar o assunto e mostrar ao meu novo amigo que a verdadeira igreja bíblica era a minha. Embora desconhecesse por completo as crenças dele, eu tinha grande reserva em relação aos evangélicos. Para mim, um seguidor do “catolicismo de esquerda”, defensor das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação, eles eram todos uns fanáticos alienados, dissidentes e, na maioria das vezes, ex-drogados ou ex-libertinos que usavam a religião como um tipo de compensação pelo passado obscuro. Ninguém que tivesse convicção religiosa e cabeça no lugar seria capaz de se tornar “crente”. Meses depois, eu constataria o quão errado e injusto era o meu ponto de vista e que seriam inúteis meus esforços para dissuadir o jovem estudioso das Escrituras.

– Tudo bem, Michelson. Pode ser assim como você quer. Só quero adiantar uma coisa: não vai ser nada fácil – advertiu-me.

– Como assim?! – fiquei curioso.

– Surgirão muitos problemas e obstáculos... Você quer mesmo fazer o estudo?

Esse último comentário aguçou ainda mais minha curiosidade e creio que foi a maneira de Deus chamar minha atenção, despertar meu interesse e elevá-lo acima do preconceito. Assim, sentindo-me desafiado e nem imaginando o que realmente teria pela frente, respondi prontamente: “Quero!”

*****

À medida que estudava o Apocalipse e outros livros bíblicos, eu me convencia de que as doutrinas adventistas estavam de acordo com a Bíblia. Nesse tempo, passei a me interessar ainda mais pelas Escrituras Sagradas e a pesquisar também as doutrinas de outras religiões. Afinal, era a primeira vez que eu estava tendo contato com uma igreja evangélica. O que me garantia que sua mensagem era a mais correta? Todas dizem ter a “verdade”, não é mesmo?

Descobri que Cristo é “o caminho, e a verdade e a vida” (João 14:6). Como Ele é a verdade, a Bíblia é a única fonte da verdade, pois testifica dEle e de Sua mensagem (João 5:39), legada à humanidade por Seus discípulos, testemunhas oculares confiáveis. Portanto, concluí que não era a beleza dos cultos, o poder político ou econômico, o número de adeptos ou outra coisa qualquer, a não ser a conformidade com os preceitos bíblicos, que caracteriza a verdadeira igreja de Deus.

Antes de minha decisão definitiva, passei por um conflito interior muito grande. De um lado, estavam meus amigos do grupo de jovens que havia exercido profunda influência em minha vida. Do outro, estava Jesus a dizer: “Segue-Me”; “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32). A vaidade também teve seu peso. Como podia eu, líder de jovens, um dos coordenadores da Pastoral da Juventude e da área de Comunicação da Diocese de Tubarão, profundamente envolvido com as atividades da Igreja Católica, “deixar-me levar pela conversa de um ‘crente’?” O que meus amigos padres e líderes iriam dizer?

A luta contra as evidências e o chamado do Espírito Santo duraram cerca de dois anos. Tudo que me acontecia; tudo o que eu lia e ouvia; até as missas de que eu ainda participava (agora mais para contentar minha mãe e evitar suas cobranças) pareciam me dizer que ali já não era o meu lugar. Os temas dos sermões dominicais pareciam vir de encontro ao que eu estava aprendendo na Bíblia. Lembro-me de que, nas últimas missas a que assisti, os sermões tinham tratado justamente sobre a “santidade” do domingo, a imortalidade da alma e a intercessão de Nossa Senhora. Era como se tudo estivesse sendo dirigido de maneira a me dizer alguma coisa. E estava.

Eu havia descoberto, por meio do estudo da Bíblia, que o sábado, e não o domingo, é o único dia santificado e reservado para atividades exclusivamente religiosas e de ajuda ao próximo. Isso havia sido um choque para mim. Fazia anos que lia a Bíblia, mas nunca me havia apercebido desse fato – da diferença entre os dez mandamentos do Catecismo e os dez mandamentos das Escrituras, registrados em Êxodo capítulo 20.

Entendi que o sétimo dia, o sábado, é um marco comemorativo no tempo; o memorial da origem da vida; o monumento da Criação. Fiquei fascinado e ao mesmo tempo indignado ao perceber que não havia apenas uma versão para a origem da vida: o evolucionismo. Descobri com espanto o criacionismo, que sustenta ser Deus o Criador da matéria e da vida; que “em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado, e o santificou” (Êxodo 20:11). Como puderam me privar – na escola e na igreja – desse conhecimento? Por que não me disseram que a teoria da evolução não é unanimidade entre os cientistas (mesmo os ateus) e que apresenta sérias falhas? Por que não me disseram que, para ser harmonizada com o darwinismo, a história da criação nos primeiros capítulos de Gênesis era considerada mitológica pela igreja?

Descobri que do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado (o ocaso do sol é o referencial bíblico para a passagem dos dias, conforme Levítico 23:32 e outros textos), o sétimo dia permanece em meio ao tempo, entre duas semanas, e entre duas épocas também: o passado e tudo o que foi feito e o futuro e aquilo que ainda pode ser realizado. É “o passo atrás antes do salto adiante”; um dia especial que acrescenta qualidade à vida humana.

Ao separar o sétimo dia da semana para fins religiosos (culto a Deus, auxílio aos necessitados, contato com a natureza), os adventistas reconhecem o Senhor como o Todo-Poderoso Criador do Universo. E o sábado é mais do que um simples repouso físico, é antes de tudo uma pausa para contato mais íntimo com Deus, de tal maneira que as outras atividades ficam para depois. Claro que durante a semana é necessário manter comunhão com Deus. Mas o Criador sabia que a vida agitada não nos permitiria ter tempo suficiente e de qualidade para um contato mais demorado e profundo com Ele. Por isso nos deu o sábado de presente.

Eu havia descoberto, também, que Jesus é o único Intercessor ou Mediador entre Deus e os homens, e que os mortos, ao contrário do que muitos creem, aguardam a ressurreição por ocasião da segunda vinda de Cristo. Enfim, havia muita diferença entre o que eu estava descobrindo nas Escrituras e o que havia aprendido desde a infância. O abalo em minhas convicções e opiniões estava sendo profundo e intenso.

Mas tomar a decisão definitiva não foi fácil. Fiz algumas pequenas mudanças em minha vida, mas sabia que ainda não era o suficiente. Conversão não se trata de “remendar” a vida e melhorar comportamentos. É muito mais que isso. É entrega completa a Jesus com a disposição de, com a ajuda do Espírito Santo, obedecer a tudo quanto é ensinado na Palavra de Deus. Tudo. É como a história que li, certa vez, de uma pessoa que adquiriu uma casa e resolveu entregá-la a Jesus, com exceção de um pequeno prego em uma das paredes. E foi justamente nesse prego que Satanás pendurou um pedaço de carne podre que infestou toda a residência. A lição é clara: não é possível entregar um coração dividido a Deus. Eu sabia disso; e aquela situação me deixava muito preocupado.

Eu não era ex-drogado ou ex-libertino, mas Deus me fez ver que também precisava de libertação – da minha justiça própria, do meu orgulho intelectual, do meu vazio espiritual. Na verdade, por causa desse orgulho, eu era ainda pior do que aqueles a quem olhava por cima. Quem era eu para julgar meu semelhante? Quem era eu para me considerar melhor que outras pessoas? Aos poucos, o Espírito Santo me fazia tomar consciência de minha condição de pecador e de minha urgente necessidade de Jesus. Deus queria me dar nova vida e eu relutava. O Vanderlei fazia apelos constantes, mas eu me esquivava. As palavras dele e a voz do Espírito Santo em minha mente ardiam como fogo, mas eu não tinha forças para dar o passo definitivo. “Como posso deixar tudo – família, admiração, amigos – e Te seguir, Senhor?”

Eu tentava esquecer o dilema. E a festa de encerramento do curso de Química naquela noite de sexta-feira era uma ótima maneira de afastar a convicção insistente que ecoava dentro de mim. Quase sem perceber, eu estava agindo como a maioria dos jovens da minha geração (e de todas as gerações): buscando diversão para me distrair e esquecer por alguns momentos que a vida é muito mais séria do que pensamos; que o vazio dentro do peito só faz aumentar quando o ignoramos; que enquanto se processa um verdadeiro conflito cósmico, uma disputa pelo nosso coração, fechamos os olhos na ilusão de que a tempestade vai passar e poderemos abrir os olhos quando o sol voltar a brilhar. Ilusão. Mera ilusão.

Como havia decidido não mais consumir bebidas alcoólicas, meus colegas me consideraram a pessoa ideal para buscar uma caixa de som para animar a festa. Sabia que era preciso praticamente atravessar a cidade para pegar a tal caixa, mas como era motorista novato, ansioso por aproveitar qualquer oportunidade de dirigir, e meu pai havia enchido o tanque do carro, atendi ao pedido. Convidei duas amigas para me acompanharem e rumamos para o bairro Próspera.

Conversávamos animadamente quando, de repente, numa curva a pouco mais de um quilômetro do colégio, surgiram diante de nós dois pares de faróis alinhados e em alta velocidade. Meu Deus! Se continuasse em frente, seria colisão na certa. Rapidamente olhei para o lado. Avaliei a situação e concluí que na velocidade em que o carro ia não conseguiria entrar na estrada à direita, poucos metros adiante. Só havia uma alternativa: subir na calçada e passar pelo gramado, entre uma pedra – grande o bastante para destruir a frente do automóvel –, e um muro de uns três metros de altura. Uns dez metros à frente havia uma árvore bem no meio do caminho. Mas até lá eu já teria conseguido voltar para a estrada... Curiosamente, que todos esses pensamentos ocorreram em uma fração de segundos. Tudo bem. Era só manter a calma. Seria uma manobra perfeita. E, de quebra, ainda aproveitaria a situação para impressionar minhas amigas com minhas habilidades ao volante.

Reduzi um pouco a velocidade, sem travar os freios. Girei o volante à direita e percebi, com o canto do olho esquerdo, os dois carros passarem voando como um borrão de luz. Seria uma batida e tanto! Por pouco! E se tivesse tentado entrar na rua à direita, teria destruído a lateral do Fiat Uno zero quilômetro do meu pai. Sem dúvida, havia tomado a decisão certa. Uma manobra perfeita.

Foi então que percebi que não tinha mais controle sobre as rodas dianteiras. Ah, não! O carro estava derrapando na grama. Minha manobra perfeita... Girei o volante para a esquerda, e nada. Os pneus haviam perdido a aderência. Nem me lembrei de tirar os pés do freio. Na verdade, acho que acabei pressionando mais ainda. A árvore! O tempo parecia congelado. Tudo estava acontecendo em câmara lenta. Meu pai vai me matar! A árvore se aproximava lentamente. Tomara que a polícia não apareça. De nada adiantaria explicar a situação: eu não tinha habilitação. E logo hoje que saí sem pedir o carro para o meu pai. A primeira vez sem pedir...

Deu tempo até de imaginar como seria me chocar de frente com uma árvore. Seria como num carrinho de choque dos parques de diversão? Acho que não... Quando a “câmera” deixou de ser lenta, tive tempo apenas de gritar: “Segurem-se!” Firmei as mãos no volante e instintivamente fechei os olhos. O som estranho de metal se retorcendo e vidro quebrando invadiu-me os ouvidos. Depois veio o silêncio. O motor ainda estava ligado e alguma parte dele estava encostando na lataria, pois produzia um som metálico irritante. Desliguei a chave. Certifiquei-me de que minhas amigas estavam bem e abri a porta. Ainda um pouco atordoado, ajeitei os óculos, sai do carro e avaliei o estrago. Encostei o queixo no teto do automóvel e coloquei as mãos sobre a cabeça. Nenhum palavrão, nem mesmo qualquer sentimento de raiva me veio à mente. Apenas um pensamento: “Hoje é sábado... O que estou fazendo aqui?”


Foto tirada poucos meses antes do acidente

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Michelson.
A sua estoria deste capitulo é muito semelhante a minha em relação a quimica,igreja católica (fui lider de jovens lá!)e luta para decidir por Jesus. A questão de orgulho intelectual e outras coisas mais tambem tive. Você optou pelo jornalismo como profissão e tem a química como ferramenta de pesquisa científica. Fiz ao contrário, optei pela engenharia quimica como profissão e tenho o jornalismo como ferramenta de pesquisa. São caminhos parecidos ou não?
E como se eu estivesse contanto minha estoria. Que interessante!

Shalon

Claudio Almeida
Vila dos Cabanos Pará
cwpa2@yahoo.com.br

Anónimo disse...

"Descansar aos sábados faz sentido".
Que Deus abençoe você Michelson.
Você tem sido um grande amigo para muitos jovens que tem o prazer de ler as matérias do seu blog.
Um grande abraço...e Deus continue iluminando em seu ministério.