terça-feira, abril 11, 2006

Capítulo 5 - Gênesis

Michelson Borges

Eu havia acabado de levar um “fora” daquela que poderia ter sido minha primeira namorada. Com os sapatos na mão, a calça dobrada até as canelas e os olhos rasos d’água, ali estava eu, caminhando pela praia escura, totalmente desolado e confuso. Passava da meia-noite e ainda faltavam uns três ou quatro quilômetros para chegar à casa de férias dos meus pais. Mas eu não estava com pressa. Queria ficar sozinho. Chegar a lugar nenhum.

Andando lentamente e olhando para o chão, pude perceber uns pontinhos brilhantes na areia úmida. Parecia que havia estrelas espalhadas pelo caminho. Curioso, abaixei e recolhi algumas daquelas “estrelas” com luz esverdeada. Como estava muito escuro, não dava para saber o que eram. Então guardei algumas nos bolsos da calça, para investigá-las mais tarde. Naquele momento, não tinha cabeça para descobertas científicas. Mas, motivado pelas “coisinhas brilhantes”, resolvi me deitar na areia para observar as estrelas – e como gostava de olhar para elas, identificar as constelações, os planetas... O céu estrelado me fazia sentir pequeno. Insignificante. O que eram meus problemas de adolescente diante de toda aquela imensidão?

“Deus, se o Senhor existe mesmo (e no fundo eu sei que existe), por que nos deixa sofrer neste planeta?”, comecei a falar em pensamento. “Sei que há pessoas sofrendo muito mais do que eu. Há fome no mundo, guerras, violência, doença e morte. Mas a minha dor é só minha. É o que estou sentindo agora. Não posso evitar. Sabe, Senhor, às vezes a vida me parece tão confusa... Por que as coisas têm que ser tão difíceis? Acho que seria mais fácil se não tivesse nascido com sentimentos. Ao mesmo tempo em que sofro, com o coração apertado, sinto-me um tolo.”

Fixando os olhos no Cinturão de Órion (nas estrelas conhecidas como Três Marias), completei: “Achei que tudo daria certo, então por que levei esse ‘fora’. Vai entender as mulheres!”

Conhecia a Cláudia desde os tempos da Primeira Comunhão, quando estávamos na faixa dos onze ou doze anos. Quando a reencontrei, seis anos depois, num evento envolvendo grupos de jovens católicos, ela havia crescido e se tornado uma jovem muito bonita. De vez em quando, nos víamos em algum curso ou encontro da igreja. Somente depois de algum tempo é que fui saber que ela estava apaixonada por mim, mas meu coração estava cego por um amor platônico que depois descobri ser ilusório.

Ignorei os sentimentos da Cláudia por alguns anos, chegando mesmo a dizer que deveríamos continuar sendo apenas amigos. O tempo passou e meu envolvimento com as atividades da Igreja Católica aumentou a ponto de não ter tempo para quase mais nada. Estava com dezessete anos e nunca havia namorado. Todos os fins de semana eram a mesma coisa: preparo de programas de rádio, coordenação de reuniões das Pastorais da Comunicação e da Juventude, cursos, organização de missas, entre outros compromissos. Eram atividades edificantes e nobres, mas sentia falta de um relacionamento mais profundo, além da amizade.

A essas alturas, apesar do desejo de servir a Deus de forma mais completa e do estágio de uma semana que havia feito no Seminário Teológico de Tubarão, SC, eu tinha uma certeza: não queria mais ser padre. Sentia falta de uma mulher com quem compartilhar sentimentos. Sentia falta de uma namorada. E assim descobri que a vocação sacerdotal não era para mim, embora fosse sonho da minha mãe.

Foto tirada no Seminário de Tubarão (1989)
Certo dia, encontrei a Cláudia numa festinha do grupo de jovens. Ela me olhava de um jeito diferente. Me tratava de um jeito diferente, especial. E pensei: “Por que não? Ele gosta de mim. É uma boa moça. Por que não?”

Era Verão. Dali alguns dias haveria um show de rock ao ar livre na Praia do Rincão. Eu não gostava muito desses eventos, com aglomeração de pessoas e barulho em excesso, mas a Cláudia iria ao show, e talvez fosse a ocasião ideal para pedi-la em namoro.

O dia do show havia chegado. O nervosismo era insuportável enquanto me arrumava para sair. Como deveria abordá-la? O que deveria dizer primeiro? Odiava aquela sensação de insegurança e temia parecer ridículo. Quando cheguei ao local do evento, já havia uma pequena multidão em frente ao palco. Comecei a circular em meio às pessoas, incomodado pelo barulho das gigantescas caixas de som. Tive até vontade de ir embora. “Talvez não fosse mesmo o lugar ideal para se pedir alguém em namoro...” Na verdade, era puro medo.

De repente, avistei a Cláudia. Ela estava com algumas amigas e quando me viu sorriu surpresa. Não sabia que eu também iria ao show. Aproximei-me do grupo, meio sem jeito, e perguntei se podia falar com ela um pouco, a sós. Afastamo-nos do palco. Mesmo assim, era difícil falar num volume de voz normal. Quando disse a ela que havia pensado bastante no assunto e que queria namorá-la, ela respondeu citando uma música popular da época: “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Fiquei atordoado. Os pensamentos tão confusos que mal conseguia ouvir o barulho de fundo. Ela sorriu para mim, se despediu e voltou para as amigas. O que havia acontecido? Ela não gostava de mim? Não era o que todos diziam? Não era o que havia parecido, na festinha? Será que eu tinha dito algo errado?

O show acabou para mim. Enquanto caminhava para a praia, em direção à casa dos meus pais, aquela música não saía da minha cabeça: “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Se aquilo era a vingança da Cláudia, admito, era a vingança perfeita.

Deitado na areia, olhando para o céu, eu tentava racionalizar a situação, mas não era tarefa fácil. Quase sem perceber, me vi recapitulando os últimos anos da minha vida e o momento em que havia ingressado no grupo de jovens.

Eu tinha quinze anos quando o Mariélio, um jovem da minha idade que morava no mesmo bairro que eu (o Vera Cruz), me convidou para participar de uma encenação teatral natalina, com um grupo de jovens de outro bairro, conhecido como Lote 6. O pai dele era barbeiro e cortava meu cabelo desde a infância. Ele sempre foi muito envolvido com as atividades da Igreja Católica e o filho seguiu-lhe os passos. No meu caso, tive como referência a religiosidade de minha mãe, cujo sonho, como disse, era me ver padre. Mas meu envolvimento com a igreja, até então, se limitava a ir à missa aos domingos e rezar o terço com minha mãe e irmãs, de vez em quando. Aquela dramatização com o grupo de jovens marcou uma nova etapa em minha vida espiritual.

– Encenação de Natal? Como é isso? – perguntei.

– A gente ensaia um roteiro por uns dois meses e se apresenta no salão comunitário do Lote 6, no dia 23, e na Igreja Matriz, na noite de Natal.

– Deve ser interessante. Mas não sou do tipo desinibido para falar em público...

– Eu também não. Mas a fala é pequena e Deus ajuda.

A insistência do Mariélio venceu minha timidez e acabei aceitando o convite. Os ensaios eram momentos muito agradáveis. Sentíamos que estávamos fazendo algo realmente importante e especial. E o contato com aqueles jovens do grupo me fez ver que existiam amigos verdadeiros; amigos para toda a vida.

Minha fala na peça de fato não era muito grande. Mesmo assim, o medo de esquecê-la me atormentava. As mãos tremiam e eu segurava a pedra de carvão mineral com alguma dificuldade. Eu era um dos três reis magos e levava como presente a Jesus o carvão, um dos símbolos da riqueza de Criciúma.

Tirando uns titubeios aqui e ali, a encenação tinha sido um sucesso – e uma bênção. Muitas pessoas haviam sido levadas às lágrimas ao relembrar a importância e o significado do nascimento de Jesus. Concluída a peça, nos retiramos para uma sala e fizemos uma oração de agradecimento a Deus. De mãos dadas, em círculo, cada um comentou o que estava sentindo. Depois, recitamos o Pai Nosso. Aquilo mexeu profundamente comigo e decidi que queria fazer parte daquele grupo. E foi uma das melhores decisões que tomei.

O grupo de jovens foi como um muro de proteção numa fase complicada da vida. É inegável o efeito da “pressão do grupo” na adolescência, quando se busca a autoafirmação e a aceitação. Por isso, pertencer a um grupo de jovens idealistas e de motivações puras foi a melhor coisa que poderia ter me ocorrido naquele momento. Éramos muito unidos. Fazíamos quase tudo juntos: celebrávamos o aniversário de cada um organizando festinhas surpresa embaladas com muita cantoria ao violão; conversávamos horas e horas sobre os mais diversos assuntos; íamos ao cinema; a bailes de formatura; festas e retiros.

Também participávamos de atividades mais sérias, como campanhas comunitárias para angariar fundos para projetos sociais, organização de missas, encontros de jovens, preparo de um jornal paroquial, festivais culturais, etc. 

Grupo de jovens JEF (1988)
Quando o Mariélio e eu ingressamos no grupo, ele se chamava Jovens Esperança do Futuro (JEF). Achamos que conceitualmente aquele nome não era bom, uma vez que queríamos ser a “esperança do agora”. Então propusemos o nome “Gênesis”, sugerindo a ideia da semente, com seu potencial futuro, mas com sua história presente, de vida e crescimento. Desenhei o logotipo (um círculo com uma semente estilizada germinando) que foi estampado na camiseta verde do grupo. E ficamos conhecidos então como Grupo de Jovens Gênesis – nome que nos traria muitas saudades em anos posteriores. Estávamos fazendo a nossa história; forjando o nosso caráter; e talvez nem nos déssemos conta disso na época.

Com a camiseta do Gênesis
O grupo também contribuiu muito para eu superar minha introspecção natural. Desde criança, meu passatempo predileto era me trancar no quarto, ler histórias em quadrinhos e desenhar. Gastava férias inteiras criando personagens e ilustrando histórias.

Embora tenha sido criado por um craque no futebol – meu pai –, nunca tomei gosto pela bola. A cobrança era grande: “O quê?! Filho do Chico Borges e não joga futebol?!” Realmente era difícil entender... Meu “esporte” eram o desenho e a leitura.

Meu pai volta e meia me contava da ocasião em que havia me levado a um campo de futebol para assisti-lo jogar. Só quem ao invés de acompanhar a partida, fiquei “caçando” ossos de animais nas imediações do campo, para a minha coleção de “fósseis”. Tentei algumas vezes bater uma bolinha com amigos, querendo pegar o jeito da coisa e deixar meu pai orgulhoso. Mas não teve jeito. Faltavam coordenação e entusiasmo. Era melhor pendurar as chuteiras antes mesmo de usá-las, afinal, não queria ficar conhecido como “perna de pau”. Isso, sim, seria vergonhoso para o “Chico Borges”. Mas é bom que se diga que dele nunca houve a mínima cobrança e sempre serei grato ao meu pai por isso. Tinha toda liberdade para ser desenhista, cientista ou o que quer que escolhesse.

A sociabilização que o esporte poderia ter me dado encontrei-a no grupo de jovens. Quando ingressei no Gênesis, minha timidez foi aos poucos sendo superada. Tínhamos que preparar os temas das reuniões de sábado à tarde, além de apresentar dramatizações nas missas e dirigir as celebrações no centro comunitário, quando o padre não podia comparecer.

Caminhada Vocacional Diocesana (1988). Aqui estou representando o apóstolo João. À direira, de roupão laranja, o Mariélio
Algumas vezes, com apenas dezesseis anos e suando frio, tive que apresentar o sermão nessas celebrações. Era tremendamente desafiador falar em público. Mas era algo que também me dava muita satisfação (e alívio, quando o sermão acabava...).

Via Sacra (1990), no papel de Jesus
Depois de algum tempo, fui eleito presidente do grupo de jovens. Aquilo me pesou nos ombros; por outro lado, foi a oportunidade de dar àquelas pessoas o melhor de mim, como forma de retribuição por tudo o que o Gênesis havia me dado.

Levei a sério o encargo e quando me dei conta, estava sobrecarregado de compromissos: reuniões paroquiais da Pastoral da Juventude, organização de eventos, cursos, missas, e um longo etecetera. Era bom me sentir responsável e respeitado (respeito que seria dolorosamente arranhado devido à minha escolha religiosa, com a qual, nessa época, ainda nem sonhava).

Todos os compromissos e atividades relacionados com a igreja, sem dúvida, ajudaram no meu amadurecimento. Mas e o coração? Simplesmente não havia tempo para isso (ou seria falta de coragem?). Tentando entender psicanaliticamente a coisa, acho que o amor platônico foi a solução que encontrei de forma inconsciente para o dilema. E quando soube que a garota por quem estava apaixonado não queria nada além de amizade, perfeito. Podia amá-la à distância, sem o risco de envolvimento e frustração. Sofri bastante por alguns anos, até descobrir no que meu coração havia me metido.

Todas essas lembranças me vieram à mente enquanto permanecia ali, deitado na areia sob o céu estrelado, remoendo o remorso e a tristeza por ter sofrido justamente o que havia evitado por tanto tempo: a desilusão amorosa.

Era tarde e eu precisava ir para casa. Minha mãe já devia estar preocupada e eu sabia que ela não dormia até eu estar de volta. Além do mais, de nada adiantaria ficar ali “chorando as mágoas”.

Levantei-me, sacudi a areia da roupa e continuei a caminhada para casa. As “estrelas” ainda brilhavam na areia, recordando-me que tinha um mistério para solucionar. Quando cheguei à varanda da casa dos meus pais, retirei as coisinhas brilhantes dos bolsos e as expus à luz. Foi então que percebi que eram restos de tatuíras mortas. As carcaças em decomposição deviam estar emitindo algum tipo de substância luminescente. Minha calça ficou fedendo a crustáceo podre, e pensei: “Que ótima maneira de encerrar a noite.”

Antes de abrir a porta, ainda dei uma olhada para o céu e pensei: “Haveria alguém especial para mim? Encontraria, afinal, a ‘tampa para a minha panela’? Será que Deus Se importaria mesmo com os desejos de um jovem sonhador?”

Eu teria que esperar alguns anos mais para – em outro tempo e lugar – ter a certeza de que o Senhor havia ouvido minha súplica.

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro Michelson
Dizem que cada um tem uma estória própria. E concordo com isso! POrem, sua estoria até aqui tem muitos detalhes parecidos com a minha estória. Fui convidado diretamente para ser padre tambem. E etc etc etc.

Gosto muito de seus escritos.

Louvado seja Deus por seu ministério e por Ele ter me dado a oportunidade de encontrar este seu blog.

Shalon

Claudio Almeida
Vila dos Cabanos-Pará
cwpa2@yahoo.com.br

Anónimo disse...

Olá Michelson, foi muito bom conhecer vc no AcampJA da União Norte Brasileira, seus seminários enriqueceram muito minha vida espiritual.
Continue sua história, li toda, mas e desenrolar tô cururiosa para, e quando foi realmente o encontro com a Deboara. Deixando a gente com gostinho de quero mais né?
Um Abraço!!

Anónimo disse...

Michelson e Debora, esse livro é ótimo, lí todo no trabalho e tô ancioso pra vcs postarem logo, q Deus continue presente nas suas vidas...

Anónimo disse...

Não aguento mais de tanta anciedade... Vcs tinham q puplicar esse livro, na Casa não tem nenhum romance...rsrs

Anónimo disse...

Ai... Acho q não tem ninquem tão ancioso como eu pra ler o final da história...

Anónimo disse...

CARA, NUNCA VI NADA PARECIDO. COMO PODE LEMBRAR DE TODOS ESSES DETALHES? MINHA ESPOSA AGORA QUER UM LIVRO SOBRE NOSSA HISTÓRIA. QUE PROBLEMÃO VCS ME ARRUMARAM. RS RS. DEUS ABENÇOE VCS.
JOSUÉ E KELLY. CAMPO MAIOR-PIAUÍ.
irakitam@hotmail.com

Neidinha! disse...

Ja faz muito tempo que leio seus textos, desde que ainda escrevia na revista.Gosto muito. Agora sou sua seguidora aqui na Web.
Esse texto como todos os outros esta d+.
Ansiosa como eu pra ler o final da história..