A poeira e o cheiro da fumaça dos cigarros me sufocavam. Enquanto percorríamos a distância de cerca de 200 km entre Florianópolis e Criciúma, apenas as lembranças dos últimos dias é que me animavam um pouco. A imagem daquela garota loira não me saía da cabeça. A Débora havia causado profunda impressão sobre mim. Tentava me concentrar na lembrança de seu perfume suave, sua voz meiga e seu jeito delicado, para esquecer um pouco da rudeza ao meu redor.
Apesar do desconforto de viajar em um caminhão de operários de construção, havia sido uma bênção o fato de meu pai ter conseguido com um amigo dele, dono de uma construtora em Criciúma, carona para mim de ida e volta a Florianópolis todos os fins de semana. O “caminhão boiadeiro”, como os trabalhadores o chamavam, saía de Criciúma aos domingos, às 19 horas, e chegava à capital por volta das 23 horas. Da Ilha, saíamos às sextas-feiras, às 13h30. O lado bom era que eu podia chegar a Criciúma antes do pôr do sol de sexta-feira, havendo tempo suficiente para me preparar para o sábado e fazer o culto com minha mãe e a Emanuela, minha irmã mais nova.
O caminhão terminava a viagem em frente à sede da construtora. Dali cada um ia para sua casa. A minha ficava a uns três ou quatro quilômetros e era preciso atravessar o centro da cidade para chegar lá. Confesso que era meio constrangedor ter que cruzar a região central de Criciúma com a roupa velha que eu costumava usar nessas viagens – afinal, se colocasse uma roupa melhor, poderia estragá-la e sujá-la com o pó do caminhão –, mas meu pai havia me ensinado uma importante lição de humildade quando eu ainda era adolescente. Durante algum tempo, trabalhei como seu ajudante em uma metalúrgica. Fazíamos diversos trabalhos em ferro e aço, e era inevitável não danificar e sujar a roupa com graxa e tinta. De vez em quando, meu pai me encarregava de ir à padaria. Quando percebia minha vergonha de ir com a roupa de trabalho, ele dizia: “Vergonha é ser preguiçoso. O trabalho é uma honra e essa roupa é símbolo disso.”
Houve ocasiões em que me sentia até mesmo revoltado por ver meus amigos se divertindo e eu tendo que dar conta de uma encomenda de última hora, trabalhando mesmo nos fins de semana. Mas um dia meu pai me olhou sério e fez a seguinte proposta: “Filho, você viu como é o lado difícil da vida; trabalhar no pesado. O que você prefere: isso ou os estudos?” A lição foi clara e eu a aprendi. Jamais me esqueci daquela pergunta. Conhecer aquela faceta difícil da vida me ajudou até mesmo na adaptação a situações desagradáveis como as viagens no “boiadeiro”. (Embora ainda hoje eu experimente certo “desconforto interno” quando sinto cheiro de fumaça de solda ou de graxa.)
Outro legado do meu pai foi a determinação. Ele sempre gostou de futebol e chegou a jogar em times profissionais, mas em 1969, quase quatro anos antes de eu nascer, teve que tomar uma importante decisão. Na época, ele jogava no Figueirense de Florianópolis, e era conhecido simplesmente como “Borges”. O Internacional de Porto Alegre demonstrou interesse nele, mas o Figueirense não quis vendê-lo para o time gaúcho. Diante do presidente do clube, na Capital, meu pai disse:
– Quero ir para o Internacional.
– Não, Borges. Conheço algumas pessoas no Fluminense e posso enviá-lo para o Rio, no futuro.
– Mas eu também tenho muitos amigos no Inter e quero ir para lá. O time é grande e eles pagarão uma faculdade para mim.
– Nada feito.
– Então vou embora. Vocês perderão a bolada que o Inter quer pagar por mim e me perderão também.
– Você não vai fazer isso.
Como resposta, meu pai arrumou a mala e voltou para Criciúma. Um dia, enquanto trabalhava como soldador para a Prefeitura, olhou para o chão e pelo canto da máscara de solda viu pares de sapatos brilhantes. Eram os diretores do Figueirense.
– Olá, Borges. Viemos levá-lo de volta.
– Já lhes dei minha resposta.
– Que é isso, homem! Quanto você ganha aqui? Vamos lhe pagar mais do que você recebia antes, lá no time. Você não é burro, né?
– Sou. E tenho mais o que fazer.
Desencantado com o futebol profissional, meu pai fez sucesso nos torneios de várzea da região sul do Estado (e fez um bom pé de meia para poder casar com minha mãe, já que os times lhe pagavam quantias polpudas para disputar campeonatos). Continuou trabalhando como empregado no setor metalúrgico, adquiriu sua própria fábrica e depois de algumas experiências profissionais mudou para o ramo de confecções. E nunca se arrependeu da decisão que tomou.
De certa forma, essa determinação toda e a caixa repleta de medalhas dele que minha mãe guardava me estimularam a também querer vencer na vida e superar os obstáculos (ainda que sempre tenha sido um “perna de pau”). Minha vitória não viria pela bola e meu “adversário” agora era o “boiadeiro”.
No caminhão viajavam homens rudes e simples. Falavam de mulheres, bebiam e fumavam sem parar. Havia também alguns evangélicos. Íamos todos – algumas vezes mais de quarenta homens – sentados em toscos e empoeirados bancos de madeira com altura de uns trinta centímetros, colocados soltos sobre a carroceria do velho Mercedes azul. Uma lona nos cobria e escondia de uma possível fiscalização – afinal, a insegurança dessas viagens era grande. Nem quero imaginar o que poderia ter acontecido em caso de acidente.
Quando não chovia, podíamos deixar um pedaço de lona dobrado, na parte de trás da carroceria, de modo que entrava um pouco de ar e tornava possível até contemplar as estrelas – quando se conseguia sentar naquele lugar disputado, é claro. Sem poder ver a estrada ou o lugar por onde passávamos, só restava contar os trevos das cidades pelo caminho para se ter ideia de onde estávamos: Tubarão, Laguna, Imbituba, Palhoça e, finalmente, Florianópolis.
A viagem era mesmo difícil, mas bem melhor do que ter que ir para a rodovia tentar uma carona todas as sextas-feiras. Nunca sabia quanto tempo iria esperar por algum motorista generoso, nem com quem iria. A insegurança e o constrangimento eram a pior parte, mas é verdade que Deus nunca me desamparou em minhas “aventuras” pela BR 101. Além do mais, tive inúmeras oportunidades de falar sobre Jesus para diversas pessoas.
Lembro-me que difícil mesmo era quando chovia. O único abrigo próximo era o viaduto que cruza a rodovia e leva à ilha de Florianópolis. Nessas ocasiões, havia duas alternativas: desistir ou se apertar debaixo da laje de concreto e disputar com outros caroneiros o espacinho de acostamento seco, além de torcer para ser visto por um motorista que se arriscasse a parar no local. Os que paravam tinham que escutar o “choro” de pelo menos uns dez caroneiros suplicantes. “Só posso levar um ou dois”, dizia o motorista. Os primeiros a chegar ao carro embarcavam. Os outros voltavam para seus “postos”, lutando para recobrar o ânimo.
Nós, que morávamos em Criciúma ou Araranguá, no extremo sul do Estado, éramos os que mais sofriam. Não somente pela distância, mas porque o pessoal que morava em cidades mais próximas acabava se aproveitando de nossas caronas. Às vezes, era tanta gente em cima do motorista que parava que ele decidia não levar ninguém.
Nossas táticas de caroneiro eram curiosas. A mais comum era usar uma placa ou faixa com o nome da cidade para onde se pretendia ir. Quando não se dispunha desse recurso, usava-se o bom e velho polegar. Nós, estudantes, sempre deixávamos nossas pastas próximas, em lugar bem visível, para garantir aos motoristas que se tratava de pessoa de bem. O que procurávamos, afinal, era conseguir numa fração de segundo a atenção e a empatia dos motoristas. Alguns conterrâneos meus chegavam a vestir a camisa do Criciúma Esporte Clube, que havia vencido na época o campeonato estadual. Isso fazia com que simpatizantes do time quase sempre parassem. Mas, por outro lado, era preciso estar disposto a ouvir os “elogios” dos adversários também.
Mesmo com todos esses truques, pegar carona era um desafio. Algumas vezes conseguíamos uma em cinco minutos; noutras, ficava-se até três ou quatro horas de pé sob o sol. Quando cansava e tinha algum dinheiro, voltava para o centro de Florianópolis e na rodoviária tomava o ônibus para Criciúma. A tentação de fazer isso quando tinha alguma economia era grande, pois os ônibus eram confortáveis e eu podia ir lendo em paz, nas quase três horas de duração da viagem. Mas eu não podia me dar ao luxo de gastar. Quando faltavam recursos, não havia mesmo escolha. Placa na mão e polegar em riste.
Percebi que a maioria dos motoristas que paravam também haviam se servido de caronas algum dia. Outros, especialmente os caminhoneiros, queriam apenas uma companhia para quebrar a monotonia da viagem. Outros ainda não davam carona de jeito nenhum, com a justificativa de sempre: “A empresa não permite caroneiros.” Mas, no fundo, o que complicava mesmo a as coisas, em muitos casos, era o medo.
Valdomiro, carioca de 28 anos (mas que aparentava uns 40) e motorista havia dez anos na época, conhecia muitas histórias de emboscadas nas longas subidas da Rio-Bahia e me contou algumas delas. Nas ladeiras mais íngremes, os assaltantes corriam na frente e abriam o capô, deixando o motorista sem visibilidade. O caminhão parava. Era o fim da viagem.
Havia ainda os ladrões de carga que se aproveitavam da marcha lenta para subir na carroceria e tirar o que podiam. Por isso é comum ver o motorista com a cabeça para o lado de fora, quando dirige numa subida. “Uma vez, quando subia a Serra do Rio do Rastro, rumo a Lages”, relatou-me o senhor Monteiro, de Guarulhos, SP, “um cara subiu na carroceria e começou a jogar sacos de café para um outro no chão. Não pensei duas vezes. Atirei no cara e só ouvi o grito, nada mais.”
O perigo constante nas estradas faz com que todos os motoristas, mesmo os que costumam dar caronas, sejam cautelosos. “Primeiro eu olho para a pessoa; se eu sentir confiança, paro”, disse-me Ronaldo, de Curitiba, PR. Certa vez, ao parar para uma garota, Ronaldo se viu obrigado a levar mais três rapazes que estavam escondidos atrás de uma placa de trânsito.
Mas também houve bons momentos. Certa ocasião eu havia chegado à rodovia bem cedo e não tinha nenhum “concorrente”. Mesmo assim, as horas passavam e ninguém parava. Cheguei a perguntar “Por que, Senhor?”, quando me lembrei de que havia me esquecido de fazer algo que já era meu costume: retirar-me para o acostamento e antes de mais nada pedir a bênção de Deus. Meio envergonhado, baixei a placa onde se lia de um lado “Criciúma” e do outro, “Fpolis”, e virado de costas para a BR fiz minha oração. Mal abri os olhos e pude ouvir um carro buzinando alguns metros adiante. Peguei a bolsa, guardei a placa e corri na direção do Santana e do casal que acenava para mim. Eram adventistas. Ao me verem orando, sentiram que deviam parar.
Com esta placa eu pedia carona na BR 101. Num lado estava escrito “Fpolis”, no outro, “Criciúma” |
Mas viajar no “boiadeiro” tinha lá suas vantagens. Horário fixo, carona garantida, economia (podia usar o dinheiro que gastaria com o ônibus), e havia também o meu amigo e irmão Saulo, que trabalhava na construtora e frequentava, como eu, a Igreja Adventista Central de Criciúma, aos sábados. Juntos, íamos cantando algumas músicas e hinos religiosos, sempre com o acompanhamento de seu inseparável violão. Algumas vezes, os operários até se uniam a nós, cantando alguns hinos mais conhecidos. Quando isso acontecia, meu irmão e eu sorríamos um para o outro contentes por tornar o ambiente mais agradável.
Naquela noite, entretanto, enquanto voltava de Criciúma, mal podia me concentrar nas músicas que meu amigo tocava. Ficava imaginando uma forma de voltar a ver a Débora. Algumas semanas já se haviam passado desde que a vira pela primeira vez na Igreja Central de Florianópolis, mesmo assim, não conseguia parar de pensar nela. Em cada culto de que eu participava, às quartas-feiras, renascia a esperança de reencontrá-la. Em vão.
Lembrei-me então de que quando conversamos pela primeira vez e descobrimos que ambos gostamos de desenhar, prometi-lhe emprestar uma história em quadrinhos de minha autoria, além de tê-la convidado, juntamente com a Rafaela, para irem comigo à igreja do bairro Forquilhinhas, no município de São José. Era o motivo ideal para tentar um novo contato, mas... Deveria ou não procurá-la? Será que ela também estaria pensando em mim? Eu estava inseguro, mas sentia que devia fazer aquilo. Era uma estranha convicção que não vinha de mim mesmo.
Enquanto o caminhão subia o Morro dos Cavalos, a uns 40 km de Florianópolis, lembrei-me daquela quarta-feira, quando a conheci.
– “Deus é tão bom; Deus é tão bom; Deus é tão bom, é tão bom pra mim!” – cheguei cantando na pensão.
– O que aconteceu, Michelson? – perguntou-me o Deoclávio, um jovem gaúcho que também morava lá.
– Conheci a garota mais linda e adorável do mundo! Acho que estou amando!
Eu sabia que ainda era cedo para dizer aquilo, mas havia um sentimento muito forte em meu coração, algo que nunca havia sentido antes. Era impossível deixar de notar meu ar “abobalhado” de apaixonado.
Fui dormir bem tarde naquela noite. Não somente pela euforia que me dominava, mas por ter narrado para meus amigos todos os detalhes do encontro.
Por volta das 12h45, resolvi ir para a cama. Mas antes me ajoelhei em frente à escrivaninha do meu quarto e falei com Deus, em oração: “Querido Pai Celestial, Tu me conheces mais do que qualquer outra pessoa e sabes o que é melhor para mim. Tu conheces a Débora também... Se essa for a Tua vontade, permite que nos conheçamos melhor. Sinto muito a falta de uma namorada e amiga cristã, e ela parece ser a pessoa ideal. Mas que seja feita a Tua vontade e não a minha. Em nome de Jesus, amém.”
*****
O dia em que eu pregaria na Igreja Adventista de Forquilhinhas se aproximava. Meu maior desejo era de que a Débora fosse junto comigo. “Talvez ela já tenha até esquecido meu convite”, pensei, já me consolando caso ela não aparecesse. O problema é que, mesmo que ela quisesse ir, não teria como entrar em contato comigo. A única que tinha o telefone da pensão era a Rafaela.
Reunindo coragem não sei de onde, resolvi ir ao shopping onde a Débora trabalhava para entregar-lhe a história em quadrinhos. Cheguei lá pelas dezessete horas. Infelizmente, ela já não estava mais lá. Havia saído dezesseis horas. Cheguei a pensar que talvez não fosse da vontade de Deus que nos encontrássemos novamente. (É até estranho pensar em como seria meu futuro se eu realmente desistisse de reencontrá-la.)
Voltei para casa desapontado, pois no dia seguinte iria a Forquilhinhas e não tinha certeza de que a Débora se lembrava do convite. Só havia uma maneira de manter contato com ela: por telefone. E foi exatamente isso o que resolvi fazer. Procurei na lista telefônica o número do telefone da loja em que ela trabalhava. Para piorar tudo, o telefone da pensão estava com defeito e só era possível ligar batendo no gancho do aparelho os números correspondentes ao telefone para o qual se queria ligar. O Luís me ajudou na “operação”, pois estava mais familiarizado com a artimanha por ter que ligar semanalmente para seus parentes em São Paulo. Cheguei a pensar em desistir da ideia. Minha boca estava seca e temia não saber usar as palavras certas. Mas, de repente, o Luís me passou o telefone. “É do shopping.” Não dava mais para desistir.
– Boa tarde. Posso falar com a Débora? – perguntei, com o coração acelerado.
– Ela saiu para almoçar – respondeu uma voz masculina.
Mudando da euforia e nervosismo para o desapontamento, pedi-lhe que transmitisse meu recado e desse a ela o número do telefone da pensão, para que ela me ligasse depois. “Será que fiz a coisa certa?”
Os minutos seguintes foram os mais longos da minha vida. Mas depois de trinta eternos minutos, o telefone tocou na pensão.
– Ninguém atende! Ninguém atende! – gritei e saí correndo em direção à cozinha, onde ficava o aparelho.
– A-alô – disse ofegante.
– Oi! – aquele “oi” soou como música ao meu ouvido. Um tremor tomou conta do meu corpo ao identificar a inconfundível voz do outro lado da linha.
– Tudo bem com você? Há quanto tempo, hein! – minhas mãos suavam frio. Se não segurasse firmemente, o telefone poderia escorregar pelos dedos.
– Eu vou bem. Você ligou para mim agora há pouco, né?
– Ah, é... Eu estive aí ontem à tarde, mas você já havia saído. Fui levar aquela história em quadrinhos, conforme tinha prometido – respondi, tentando não deixar claro (acho que sem muito sucesso) que minha real intenção era revê-la.
– Verdade? Ninguém me contou nada – a voz dela tinha a mesma doçura de quando nos havíamos conhecido. Ainda não conseguia acreditar que estava falando com ela.
– Bem, eu liguei para reforçar o convite que lhe fiz naquela quarta-feira, lá na Igreja Central. A Rafaela deve ter lhe avisado, mas...
– A Rafaela? – interrompeu-me, com tom de surpresa. – Não... Ela não me disse nada.
Alguns dias antes a Rafaela havia me telefonado para confirmar a ida a Forquilhinhas. Pedi-lhe então que convidasse a Débora, mas, pelo visto, ela havia esquecido.
– De qualquer modo, estou lhe convidando, e não aceito “não” como resposta.
– Bom, já que é assim, eu vou. E se você vir ou falar com a Rafaela, diga que eu tenho uma novidade para contar para ela.
– E eu não posso saber do que se trata?
– Prefiro contar pessoalmente.
Nas horas seguintes, a curiosidade quase me matou.
*****
A Débora e sua amiga Sônia [nome alterado], também do município de Palhoça, já estavam no terminal rodoviário quando o Saulo e eu chegamos. Senti um frio na barriga quando a vi de longe. A gravata me incomodava um pouco, talvez pelo nó que se formou em minha garganta. Logo eu que me considerava tão seguro agindo daquela maneira! Enfim, todo o esforço para contatá-la havia valido a pena. Ela estava ali!
Logo em seguida, a Rafaela também chegou. Terminados os cumprimentos, perguntei à Débora sobre a tal novidade, ao que a Rafaela interveio:
– Não precisa nem falar. Eu até já sei o que é. Quer ver que é sobre aquilo que lhe falei, Michelson? – disse-me a Rafaela, lançando-me um olhar de cumplicidade. – É alguma coisa relacionada à carreira de modelo e sobre o book que você ia fazer, não é, Tati?
– Não. Não é nada disso – a Débora respondeu com estranha firmeza. – É que vou sair da loja, voltar para a igreja e estou dando estudos bíblicos para a Teca.
Percebi um ar de surpresa no rosto da Rafaela. E eu não conseguia esconder o sorriso de satisfação. Aquela resposta era o que eu mais desejava ouvir. A Débora realmente estava disposta a deixar tudo e voltar para Jesus. Senti uma alegria muito grande. Quase não consegui conter a vontade de dar-lhe um forte abraço. Entreguei-lhe a história em quadrinhos e disse, sorrindo e brincando de falso modesto: “Só não fique reparando os desenhos, tá? Eu sei que você também é boa nisso.”
No ônibus, quando percebi que o lugar ao lado da Débora estava vago, sentei-me ao lado dela. Uma sensação maravilhosa tomou conta de mim por tê-la assim tão perto. Conversamos tanto quanto a viagem nos permitiu. Ela me contou que aos sábados não conseguia vender nada na loja e que, ao passar em frente à igreja, sentia forte desejo de participar do culto. Eu podia notar a emoção em suas palavras, enquanto me falava do desejo de voltar a santificar o sábado, como Jesus, os apóstolos e os primeiros cristãos fizeram. Ela me contou também do milagre operado na vida de sua melhor amiga, a Liliam (mais conhecida como Teca). Como, inesperadamente, a Teca havia decidido seguir a Jesus e se interessado pela Palavra de Deus. Isso também havia exercido grande influência na decisão da Débora. Eu podia compreender perfeitamente a alegria dela, pois o mesmo havia acontecido pouco tempo antes com minha mãe e com a Emanuela.
Estudando o livro do Apocalipse com elas, fiz com que percebessem o quanto Deus fez por nós, dando o próprio Filho para morrer em nosso lugar a fim de restabelecer a ligação entre criatura e Criador. Diante de tão abnegado amor, seria muita ingratidão rejeitar a vontade de Deus expressa na Bíblia. Enquanto para os que vivem longe de Deus obedecer à Palavra dEle se constitui num fardo, para os que O amam é um privilégio prazeroso. Afinal, todos os mandamentos de Deus foram estabelecidos por Ele para nossa proteção – assim como um pai fixa normas para proteger os filhos, mesmo que eles nem sempre o compreendam.
Sim, eu realmente compreendia a satisfação que a Débora sentia ao ver sua melhor amiga interessada no evangelho.
Cerca de trinta minutos depois, chegamos à Igreja Adventista de Forquilhinhas, não muito longe do centro de Florianópolis. Logo que entramos no modesto templo de madeira (substituído anos depois por um de alvenaria), deixei minha Bíblia e o hinário com a Débora e fui beber água.
O relógio marcava vinte horas quando a Rafaela, um membro daquela igreja e eu subimos à plataforma onde ficava o púlpito. Feitos os pedidos de oração e os agradecimentos, oramos a Deus e agradecemos todas as bênçãos mencionadas naquela noite. Pedimos também que Ele atendesse a cada pedido, conforme a vontade dEle.
Antes de eu dar inicio ao sermão, meu amigo Saulo louvou ao Senhor entoando uma canção:
“Tenho ouvido de uma terra linda e encantada,
De um lugar onde a felicidade é total.
Os meus olhos já divisam não tão distante,
Meus ouvidos já escutam sons divinais.”
Enquanto a melodia enchia o ar, fiquei imaginando esse lindo lugar mencionado pelo hino. Lugar que Jesus prometeu preparar para os que O amam. Um mundo maravilhoso onde reinarão a paz, o amor e a justiça. Onde não haverá mais morte, tristeza ou dor. Cruzei meu olhar com o da Débora e, sem saber explicar como, pude perceber que nossos pensamentos eram os mesmos.
“Além do rio existe um lugar pra mim,
Além do rio existe paz.
Além do rio a vida não terá mais fim,
E com Jesus irei morar.”
Nos vinte minutos seguintes, reinou uma paz indescritível pela presença do Espírito Santo. Enquanto pregava, sentia meus pensamentos claros e um poder, não de mim mesmo, em minhas palavras. Não existe sensação mais gratificante do que se deixar usar por Deus em benefício de outros!
Agradecido ao Pai do Céu pela oportunidade que mais uma vez me havia concedido – de falar de Seu amor e Sua vontade –, despedi-me dos irmãos daquela localidade e juntei-me aos meus amigos para voltarmos ao centro de Florianópolis.
Já no ônibus, tornei a me sentar ao lado da Débora. Continuamos nossa conversa animadamente. De vez em quando, ela me tocava o braço enquanto falava. Eu podia sentir um leve estremecimento ao contato de sua mão macia e me deleitava em ouvi-la e observar seu jeito especial, “manezinho” de falar. Não sei por quanto tempo mais conseguiria ocultar meus sentimentos. Na verdade, nem queria mais fazê-lo. Jamais em minha vida fui tão transparente quanto ao que se passava em meu coração.
O melhor de tudo é que seus olhos, seu jeito de falar e agir, tudo denotava certa reciprocidade de sentimentos. Era impossível deixar de sentir e perceber que “algo” estava surgindo entre nós. No entanto, pude notar certo receio por parte dela, como se estivesse travando uma luta interior. Mais tarde eu compreenderia por quê.
– Na próxima sexta-feira à noite será realizado um curso de liderança jovem lá na escola adventista, ao lado da Igreja Central de Florianópolis. Você quer ir comigo? – perguntei-lhe, enquanto caminhávamos para o ponto do ônibus da Barra do Aririú, já no centro da Capital.
– Não sei... Acho que sexta à noite terei aula... Mas convide a Rafaela, ela pode ir.
A resposta dela soou muito estranha. Ela não me pareceu tão convicta ao recusar o convite e, além do mais, algumas vezes parecia tocar no nome da Rafaela com alguma intenção que eu ainda desconhecia.
– Ah, ela também pode ir, claro. Mas venha você também – insisti.
– Realmente não sei. Não posso prometer nada.
O ônibus chegou e tivemos que nos despedir. O Saulo, que havia ficado conversando com a Rafaela e a Sônia, e eu voltamos, então, para o bairro Trindade.
O resto da semana passou rápido, embora minha ansiedade por revê-la fosse enorme. Será que ela iria ou não ao curso?
*****
Como eu ficaria na Capital naquele fim de semana, devido ao curso na escola adventista, seria a oportunidade ideal para ficar mais tempo com a Débora – se tudo corresse conforme meus planos, é claro.
Parecia até obsessão, mas tudo o que eu queria era estar com ela o tempo todo. Como era possível que, em tão pouco tempo, alguém invadisse e mudasse tão radicalmente minha vida e meus sentimentos?
Resolvi ligar para ela a fim de reforçar o convite. Por um momento, temi estar sendo muito insistente, mas resolvi ignorar esse sentimento. Eu tinha certeza do que sentia. Para que esconder? O que importava agora era convencê-la a ir ao curso naquela noite.
– Oi, Débora. Estou ligando para confirmar aquele convite que lhe fiz na quarta-feira. O que você me diz?
– Ah, Michelson... Eu combinei de ir à casa da Rafaela hoje. Não vai dar, não. Nem eu, nem ela iremos – pude sentir uma ponta de tristeza na voz dela.
– Bem, se é assim... Mas amanhã o curso continua. Se você puder ir...
– Não sei... Eu tenho que falar com a Rafaela primeiro.
Falar com a Rafaela?! Como assim? Qual a relação de uma coisa com a outra? Ela podia falar com a amiga outra hora. Eu não conseguia entender mais nada. Contrariado, desejei-lhe um feliz sábado. “Não vai ser fácil ter um sábado feliz aqui na loja”, disse ela. Desliguei o telefone, mas uma frase não me saía da cabeça: “Eu tenho que falar com a Rafaela primeiro.” O que a Rafaela tinha a ver com tudo isso?
Minha maior surpresa, no entanto, ocorreu quando cheguei à escola adventista naquela noite. A Rafaela estava lá! Uma multidão de dúvidas me assaltou a mente. Como a Débora poderia ter combinado algo com a Rafaela, se ela estava ali? Será que ela teria usado isso como desculpa para não vir ao curso e me ver? Não. Preferi não pensar nisso (como se fosse possível...).
No intervalo de uma das aulas, o Giovane (dono da pensão onde eu morava) me procurou e disse que tinha algo para me contar.
– Podemos conversar um pouco, Michelson?
– Claro – concordei, curioso.
– Sabe o que é? – ele olhou de soslaio para dentro da sala da qual havíamos saído – Tem uma garota que está interessada em você.
Por um momento exultei de alegria, pensando que ele estivesse se referindo à Débora. Mas não.
– Ela está aqui, inclusive. Estou lhe contando porque sei que ela é uma pessoa superlegal e creio que vocês formariam um belo casal.
– E quem é? – perguntei já não muito curioso, afinal, se era alguém que estava ali, certamente não era a Débora.
O Giovane me pegou pelo braço e me levou até a porta da sala de aula onde estava sendo ministrado o curso. Dali apontou para uma garota que estava de costas para nós.
– A Rafaela?! – eu disse surpreso.
– Você já a conhece?
– Já.
– Então... o que acha dela?
– De fato, eu a considero uma pessoa superlegal, cristã... Mas sabe o que acontece?
– O quê?
– Estou interessado em outra garota.
– Ah... Tudo bem. Eu só achei que devia lhe falar sobre o que a Rafaela sente. E essa outra moça é daqui?
– Também é de Palhoça. Ela já veio aqui na igreja algumas vezes.
A aula recomeçou interrompendo nossa conversa. Passei as horas seguintes divagando. Agora podia entender por que a Débora tanto falava na Rafaela. Certamente ela queria saber se eu sentia algo por sua amiga ou não. Mas uma coisa ainda me intrigava: Por que ela teria dito que iria conversar com a Rafaela naquela noite? Será que não sabia que a amiga estaria no curso? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas.
Terminada a primeira etapa do curso, naquela noite, saí rapidamente sem falar com ninguém. Chegando à pensão, deitei-me no beliche e, para variar, não foi fácil dormir.
De manhã, fui à Escola Sabatina com meus amigos e companheiros de pensão: Lauro, Luís, Cláudio e Marcelo. Mesmo sabendo que a Débora ainda estava cumprindo seus últimos dias de aviso prévio no shopping, alimentei leve esperança de revê-la na igreja. A Escola Sabatina começou pontualmente às nove horas. Às 10h30 teve início o culto. À medida que as horas passavam, minhas esperanças se desvaneciam. Pensei em ligar para ela ao chegar em casa. Mas novamente a sensação de estar sendo insistente demais me incomodava. O curso de liderança jovem recomeçaria quatorze horas em ponto. Tinha pouco tempo para decidir se ligaria ou não. Decidi ligar.
– Alô, Débora? – perguntei timidamente, com receio de estar importunando.
– Oi. Tudo bem, Michelson? – a voz dela não parecia tão entusiasmada quanto da última vez em que havíamos falado ao telefone.
– Poderia estar melhor – respondi. – Você perdeu um ótimo curso ontem.
– É? Que pena. Como foi?
– Foi bom, mas... hoje ainda tem mais – insinuei novo convite.
– Você viu a Rafaela ontem? – ela mudou bruscamente de assunto.
– Vi.
– Você foi levá-la ao ponto de ônibus?
– Não. Eu saí antes dela.
– Saiu antes?! Por quê?
– Porque sim.
A essas alturas eu já entendia o significado daquelas perguntas e o porquê do interesse na Rafaela. Agora podia enfim compreender a hesitação da Débora, afinal, sua amiga estava interessada em mim e, evidentemente, ela não queria magoá-la.
– Eu estou perguntando porque fui até a casa dela ontem e ela não estava.
– Ah, é? Mas que tal se você vier hoje ao curso? – desviei o assunto. – Caso você não possa vir à tarde, à noite teremos um programa recreativo no pátio ao lado da igreja.
– Não sei... É que estou muito cansada e pretendo falar com Rafaela hoje. Mas domingo talvez eu vá ao culto, tá?
– Tudo bem. Mas se mudar de ideia...
– Até domingo, quem sabe.
– Até hoje à noite.
– Não sei. Vou ver.
Ela não foi muito convincente ao se dizer cansada. Obviamente o motivo para não ir ao programa recreativo era outro. Caso ela realmente estivesse gostando de mim, imaginei o dilema pelo qual estaria passando. Restou-me ficar na expectativa. E continuar orando.
4 comentários:
Acompanho sempre a história de vocês e adorei ler os novos capítulos!!! Continuem postando tá? Aqui é a Daniella, noiva do Junior, do post do blog do Michelson, de abril desse ano (lição dos Jovens).
Oi, que linda a história de vocês!
Tô morrendo de curiosida p/ ler os proximos capítulos!Tô aguardando!
Tudo de bom p/ vcs.
Que Papai do céu lhe abençoe mais e mais...
Wenn gibt es mehr Kapitulus werdt?!
When will you post more chapters?
É tão bom ler como DEUS transformou suas vidas! Estou ansiosa para ver o desfecho desta historia, espero q não demore muito. Por favor postem logo o proximo capitulo!
Bjs
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