segunda-feira, dezembro 18, 2006

Capítulo 14 - Livre para amar

Dois anos antes dos fatos narrados neste capítulo, eu estava iniciando os estudos bíblicos. Sentia-me especial porque Jesus havia me chamado para conhecer Sua Palavra e descobrir a verdade sobre a história da humanidade e o conflito entre o bem e o mal no Universo. Sentia que não pertencia mais à grande massa das pessoas que vivem sem saber de onde vêm e para onde vão; que desconhecem o significado da existência e nem sequer pensam nisso. Eu conhecia a realidade material da vida, mas agora a dimensão espiritual se descortinava para mim (e o curioso é que sempre há os que pensam que conhecer a Deus e as Escrituras traz alienação). Tornei-me portadora de uma revelação capaz de mudar a vida das pessoas – a começar pela minha.

Eu era uma estudante regular. Conversava muito em sala de aula e o interesse de estar entre os colegas populares dificultava um pouco minha dedicação total aos estudos. Apesar disso, gostava de ler, o que me fazia ter bom desempenho em algumas matérias. Mas, quando comecei a estudar a Bíblia, acabei me disciplinando e retomando o interesse por muitas áreas do conhecimento. Tudo se tornou importante para mim. A ciência, bem compreendida, corrobora as verdades bíblicas. A história deixa claro que as profecias bíblicas só podem ter origem divina, tamanha é sua precisão. As leis da física e as maravilhas de complexidade da biologia apontam para o Criador inteligente. E assim por diante.

Infelizmente, com o tempo, aquela boa motivação e os bons sentimentos que Deus havia colocado em mim foram se extinguindo, à medida que eu me afastava dEle. Até que minha vida se tornou completamente sem sentido – como havia sido antes de conhecer a Palavra de Deus – e eu não me importava mais com nada.

Pedi transferência do turno vespertino para o noturno, pois sabia que o nível de exigência do desempenho dos alunos era bem menor à noite. Mesmo assim, não consegui me dar bem nos estudos porque raramente comparecia às aulas.

A orientadora do colégio me chamou para conversar e com meu histórico escolar nas mãos não conseguia entender por que minhas notas e meu comportamento haviam mudado drasticamente naquele ano. Nem tentei explicar, pois sabia que ela não entenderia meus “motivos”. Eu estava tão desnorteada que não tinha plena consciência do que estava fazendo. Aquele ano foi perdido e quase tive a matrícula cancelada. Tive que implorar para continuar estudando lá no ano seguinte e prometi que seria uma aluna assídua. Com essa condição, permitiram-me permanecer no colégio.

Mas, e agora que havia decidido voltar para Jesus, acreditariam que minhas faltas de sexta-feira à noite tinham que ver com convicções religiosas? Eu precisava mudar de turno novamente. Além do mais, à tarde os alunos eram mais dedicados aos estudos.

Fui até a secretaria e pedi transferência. A secretária me deu uma folha de papel para preencher e depois a colocou num arquivo com mais uma centena de outros formulários.

– Todas essas pessoas estão pedindo o mesmo que eu?

– A maior parte sim. Vamos analisar seu pedido e, se for justo, você entrará na fila de espera. Mas seu pedido será o de número cento e alguma coisa. À medida que as vagas forem surgindo, vamos encaixando os primeiros da fila.

Saí dali completamente desanimada, mesmo assim orei: “Senhor, sei que não mereço, mas Tu sabes que estou arrependida e quero realmente ser fiel a Ti. Se eu tiver que continuar estudando à noite para provar a todos que mudei e assim dar testemunho do Teu poder e da Tua Lei, que assim seja. Mas, Senhor, eu gostaria de estudar à tarde porque o ambiente é diferente e é melhor para mim. Senhor, se essa for a Tua vontade, por favor, me ajuda a conseguir essa transferência.”

Instituto Estadual de Educação, Florianópolis
Na semana seguinte, quando as aulas terminaram e eu caminhava para a saída do colégio, encontrei no estacionamento uma professora que havia me dado aulas às sextas-feiras à noite. Ela era muito simpática e havíamos nos tornado amigas. Sempre que me via, ela perguntava como eu estava. Naquela noite, ela estava acompanhada de outra senhora, mas mesmo assim me chamou:

– Débora! Venha aqui. Há quanto tempo não vejo você! O que está fazendo aqui? Não me diga que está estudando à noite?

– Pois é, professora... É que eu estava trabalhando no shopping e então precisei mudar de turno. Mas agora não estou mais lá e gostaria muito de voltar a estudar de dia. Só que descobri que é muito difícil conseguir isso. Além disso, eu também estudei a Bíblia e entendi que devemos observar o sábado como dia sagrado de repouso, conforme a Lei de Deus. E, de acordo com a demarcação bíblica da passagem dos dias, o sábado começa, na verdade, no pôr do sol de sexta-feira. Por isso, terei que faltar às aulas de sexta-feira à noite.

Enquanto eu falava, as duas prestavam atenção. Então, a senhora que acompanhava minha ex-professora perguntou:

– Você é adventista?

– Sim. A senhora conhece a Igreja Adventista?

– Tenho amigos muito queridos que são adventistas. Vocês se reúnem na hora do pôr do sol para orar e cantar, não é?

– É. Nós agradecemos a Deus a semana que Ele nos deu e pedimos que nos dê um sábado feliz.

Minha ex-professora se virou para a amiga e lhe perguntou:

– Você não poderia ajudar a menina? – E olhando para mim, explicou: – Ela é a nova diretora do colégio. Ela vai ajudar você.

Nem pude acreditar! Sem dúvida era obra da providência divina.

– É mesmo? A senhora pode me ajudar?

– Claro que sim! Me passe seus dados e amanhã mesmo eu resolvo sua situação. Isso é muito sério. Eu respeito a convicção religiosa das pessoas.

– Muito obrigada! Que Deus abençoe vocês! Professora, foi Jesus quem colocou a senhora no meu caminho hoje.

Elas foram embora rindo da minha felicidade. E eu ria mais ainda. Agradeci a Jesus em pensamento. Na semana seguinte, já estava estudando à tarde.

Eu podia sentir a mão de Deus em cada detalhe. Ele estava me abençoando e mostrando que me aceitava de volta. Na semana anterior, estava ansiosa e cheia de expectativas. Queria resolver logo essa questão da mudança de turno, mas não sabia como. E, para complicar, ficava ainda mais nervosa cada vez que pensava em como seria meu encontro com o Michelson.

Naquela quarta-feira, o shopping estava com pouco movimento, para desespero dos lojistas. A cada hora, mais ou menos, entrava uma pessoa na loja, olhava, olhava, e não levava nada. O tempo não queria passar. Eu ficava “enchendo o ouvido” da Dani falando sobre o Michelson e ela, bem-humorada como sempre, só ficava rindo de mim. De vez em quando, o gerente saía do escritório, todo estressado, para verificar a gaveta do caixa.

– Vamos lá! Vamos vender, pessoal! – ele dizia, enquanto batia palmas.

– Vamos levar uma sacolada para a praia e sair apresentando – eu retruquei, com ar de deboche.

– Boa ideia!

– O quê?! – estranhei a reação dele.

– Pegue o telefone e ligue para os seus clientes. Avise que a coleção nova está chegando.

A Dani já ia zombar de mim, quando ele completou:

– Você também, Dani.

Pelo menos aquilo ajudou o tempo a passar mais rápido. Cada vez que pensava que naquele dia iria ver o Michelson, meu estômago apertava.

No fim do expediente, a Dani, uma colega e eu descemos para o piso térreo, de elevador, para ganhar tempo. Mas percebi que ele não estava lá. Ficamos perto da porta uns dez minutos, conversando enquanto esperávamos.

– Débora, você tem certeza de que foi nesta entrada que vocês combinaram?

– Tenho – falei sem esconder o olhar triste, fixo na porta automática que se abria e fechava sem fazer surgir o rosto que eu queria.

De repente, me ocorreu um pensamento: “E se ele estiver do lado de fora?” Fiquei com medo de sair e me decepcionar. Mas lá estava ele, sentado na borda da floreira, de cabeça baixa, lendo a Bíblia. Minhas amigas se despediram e logo nos deixaram a sós. Ele me surpreendeu convidando-me para caminhar pela beira-mar. Apesar da chuva que havia caído durante toda a manhã, a tarde estava ensolarada. Perfeita. Então orei em pensamento: “Meu Deus, me ajude a conter meus sentimentos e fazer a coisa certa.”

Quando o Sol já estava se aproximando do horizonte, paramos para conversar no trapiche e ele me pediu em namoro, expondo o que estava sentindo por mim. Tive vontade de abraçá-lo e dizer o quanto desejava fazer parte de sua vida. Mas não conseguia deixar de pensar em como isso magoaria a Rafaela. Pedi para que ele esperasse um pouco. Queria primeiro conversar com ela e convencê-la de que nem ele, nem eu havíamos tido culpa de nos aproximarmos. Não tínhamos culpa de sentir o que sentíamos. Queria que ela tivesse tempo para aceitar a ideia antes que o Michelson e eu pudéssemos assumir qualquer compromisso. Imaginei o choque que ela iria levar se naquela noite aparecêssemos de mãos dadas na igreja. Sentia que Deus estava dirigindo minhas atitudes e de alguma maneira Ele estava me garantindo que eu não iria perder o Michelson por isso.

O olhar dele demonstrava desapontamento, reforçando ainda mais a minha vontade de consolá-lo e mostrar meu amor. Queria dar-lhe algum sinal, fazer alguma coisa que lhe permitisse ir embora feliz naquela noite – e não com aquela carinha de criança que perdeu o doce.

Apesar dos sentimentos de contrariedade que nutria naquele momento, ele conseguiu manter a serenidade enquanto pregava, mesmo quando meu pai entrou na igreja um pouco atrasado, vindo da escola onde lecionava.

Depois que o Michelson cumprimentou meu pai e se despediu dos irmãos à porta do pequeno templo de madeira, a Rafaela e eu nos dispusemos a levá-lo até o ponto de ônibus. Talvez fosse melhor tê-los deixado a sós para que tivessem uma conversa franca e a ilusão dela logo chegasse ao fim. Mas eu sabia que o Michelson tinha pavor dessa situação constrangedora – e eu também sentia um pouco de ciúme, é verdade. Enfim, minha presença a deixou furiosa uma vez mais.

Quando o veículo chegou, nos despedimos com três beijinhos no rosto. Quase sem querer deixei o terceiro beijo “escapar” bem no canto da boca dele. Surpreso, ele me olhou sorrindo, com as esperanças renovadas. Eu não havia premeditado aquilo, mas foi o “sinal” de que ele precisava e que eu tanto queria dar.

Depois disso, não foi fácil enfrentar a Rafaela. Assim que o ônibus se afastou do ponto que ficava em frente a um bar, ela deixou de lado a bicicleta que estava segurando e explodiu num tom de voz que chamou a atenção dos homens que bebiam no boteco:

– Você conseguiu chamar a atenção dele, de tanto que “deu em cima”. Mas vamos ver quem vai conseguir namorá-lo, eu ou você!

– Eu não procurei chamar a atenção dele, Rafaela. Ele gosta de mim!

– Gosta nada! Só está sendo educado porque você fica chamando a atenção dele. Pensa que ele gosta de você? – o tom agora era de puro sarcasmo.

– Eu sei que ele gosta. Ele me disse isso.

– O quê?! Quando ele falou isso? – ela arregalou os olhos, num misto de surpresa e raiva.

– Fale baixo.

A essas alturas, nossa discussão havia se tornado o foco da atenção dos homens que estavam no bar. Eles apontavam zombeteiramente para nós e riam.

– Vamos sair daqui – ordenou a Rafaela.

Caminhamos uns poucos metros até a esquina e continuamos a conversa. Mas não teve jeito, a atenção dos beberrões já estava conquistada. Na porta do bar um deles falou alto: “Olhem lá! As crentes estão brigando por causa de homem!”

Era difícil lidar com a Rafaela alterada daquele jeito. Mas eu também não conseguia deixar de sentir certa empatia por ela. Não podia tirar-lhe a razão de estar magoada comigo, mas também não conseguia suportar impassível que ela me rebaixasse e me humilhasse, insinuando que eu havia sido vulgar e que teria tentado “roubar” seu pretendente. Essa definitivamente não era a realidade. Então, concluí que era necessário tirá-la dessa ilusão e fazer com que ela entendesse que não era minha culpa.

– Hoje, quando nos encontramos para vir para cá, ele falou que está gostando de mim e me pediu em namoro. Mas eu disse não por sua causa e...

Ela não me esperou terminar e esbravejou:

– Por minha causa?! Se é por isso, agora pode ficar com ele. Eu não quero mais – ela subiu na bicicleta.

– Fique com ele – começou a pedalar e a se afastar.

– Case com ele! – gritou de longe.

– Espere, Rafaela! Não fique assim...

Meus apelos não serviram para nada. Fiquei ali parada, sozinha na rua, sem reagir por uns instantes. Os homens do bar ainda comentavam a cena e riam debochadamente. Então resolvi voltar para casa, tentando colocar os pensamentos em ordem enquanto caminhava lentamente.

Fiquei triste por tudo terminar assim naquela noite. Não queria perder a amizade da Rafaela e nem queria que ela sofresse, mas agora não havia mais nada para evitar. Tudo que eu temia havia acontecido. O melhor a fazer era mesmo seguir o conselho da própria Rafaela e namorar o Michelson. Eu me sentia livre, enfim, para demonstrar abertamente o meu amor por ele. Livre para amar. Só me restava orar para que um dia minha amiga compreendesse e me perdoasse. Embora ela tivesse gênio forte, também tinha muita comunhão com Jesus, e eu sabia que logo ela iria conseguir superar aquilo.

*****

Queria muito contar para a Teca tudo o que havia acontecido. Então resolvi ir até a casa dela no dia seguinte. Era maravilhoso poder abrir o coração sem receios e compartilhar meu amor por Jesus. Agora nós duas podíamos buscá-Lo em oração e ter mais sabedoria para aconselhar uma a outra.

– Oi, tudo bem? A Teca não está?

– Ta lá no quarto – a mãe dela respondeu secamente, sem sequer olhar para mim. Abri a porta lentamente e a encontrei chorando sobre a cama.

– O que foi, Teca? O que aconteceu?

– Ai, Tati! Não aguento mais. Acho que vou desistir.

Minhas pernas amoleceram. Eu estava tão ansiosa para que chegasse logo a quarta-feira, para ver o Michelson, que temporariamente havia me esquecido da angústia pela qual a Teca estava passando.

– Não, Teca! Você não vai desistir. Jesus vai dar forças para você enfrentar o que for preciso. Ele não permite que a provação seja maior do que você possa suportar.

– Mas é muita pressão, Tati. A mãe, o pai... todo mundo está contra mim.

– Eu sei como é. Mas vamos orar. Isso vai passar. É apenas para provar sua fé e fazer você desistir mesmo. É isso que o inimigo de Deus quer, mas resista. Sua fé vai ser fortalecida e você vai ver a mão de Deus agindo. Jesus nunca vai nos desamparar, Teca. Vamos falar com Ele. Você vai se sentir bem melhor depois de orar.

Peguei-a pela mão e nos ajoelhamos ao lado da cama. Eu não sabia mais como argumentar para que ela pudesse ver as coisas de maneira diferente. Mas sabia que Jesus poderia fazer isso. Orei e a entreguei a Jesus, e ela se rendeu de todo o coração a Ele. A cada dia era visível o poder de Deus atuando na vida da minha amiga. Pouco tempo depois, ela estava tão fortalecida que não podia conceber a ideia de viver sem fazer a vontade de Deus.

Sem saber, a Teca estava me ajudando. Eu ainda estava presa a dois mundos. Quando estava na loja, com meus colegas de trabalho e passeando pelo shopping, minha vaidade e preocupação com coisas fúteis insistia em despertar. Mas quando estava estudando a Bíblia com a Teca e conversava com o Michelson, outros valores e sentimentos contagiavam meu coração. Queria viver para Deus a fim de levar para outras pessoas a esperança maravilhosa de estar com Jesus eternamente. Queria me desprender deste mundo e ser cada vez mais semelhante a Jesus. E quando eu percebia a incrível mudança que estava se operando na Teca, isso me dava ânimo para mudar também. Ela “respirava” Jesus e Ele recriou o coração, os sentimentos, a maneira de ser e as motivações dela. Era um milagre incontestável. O semblante dela se tornou puro e singelo. Tudo nela estava de acordo com as palavras de Jesus que agora sempre estavam em seus lábios.

*****

O sábado seguinte foi o primeiro que passamos juntas na igreja. Aquela manhã ensolarada de abril marcou uma nova etapa em nossa vida. Era como se Deus tivesse aberto uma porta para entrarmos num mundo diferente e trilharmos outros caminhos – caminhos de paz e esperança; de verdadeira alegria e sentimentos puros. Passamos por tantas coisas juntas, mas nunca antes havíamos estado satisfeitas em nossa busca por algo que nem sequer sabíamos identificar. Cada uma foi chamada por Deus de maneira diferente, mas as duas haviam sofrido muito antes de chegar àquela porta. Mesmo assim, estávamos felizes como nunca e agradecidas por ter a chance de dedicar a vida a Jesus ainda tão jovens.

Chegamos à Igreja Adventista Central de Florianópolis, descemos as escadas que davam acesso ao salão onde os jovens se reuniam para a Escola Sabatina e fomos muito bem recebidas pelos colegas de pensão do Michelson. Na sala havia uns trinta rapazes e moças, todos com expressão de alegria enquanto cantavam belas músicas e estudavam a Palavra de Deus. Fomos apresentadas a outros jovens pelos amigos do Michelson. O sábado estava perfeito. Só faltava algo: o Michelson. Ele havia assumido um compromisso com o clube de desbravadores de Criciúma muito antes daquela data, por isso não pôde estar ali.

Um dos amigos dele se sentou na cadeira ao meu lado e, como que percebendo meus pensamentos, disse:

– É uma pena que o Mic não esteja aqui...

Sorri e quase sem perceber suspirei, pensando: “Eu que o diga.” Como gostaria que ele pudesse participar daquele momento especial comigo. Mas me consolei pensando que num futuro bem próximo poderíamos estar ali juntos. E ter muitos e muitos momentos especiais.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito lindo...

A Casa tem q publicar esse livro, é muito legal...

Só não parem de escrever, eu tô gostando pra caramba...

beijo Tati
Abraço Mic

lincolnmcknight

Anónimo disse...

ei, nao parem com o blog! Tava tão interessante... qdo vão postar mais da historia de vcs?
abraços

Anónimo disse...

amei...não pare
de escrever